sábado, 17 de maio de 2008

Elline - 1815

Caminhando pelas calçadas de pedras soltas a impressão que se tinha era de que se tratava de uma cidade fantasma, mas alguns passos adiante pude ouvir um murmúrio crescente. Ao dobrar a esquina me deparei com a população excitada esbarrando-se e acotovelando-se na porta do salão de música da praça principal. A curiosidade foi mais forte, aproximei-me da multidão tentando identificar as conversas sussurradas em tom de fofoca.
Lá dentro, longe das sobrancelhas arqueadas e mãos agitadas, Elline dava pequenos passos por entre as cadeiras da platéia vazia. A cada troca de perna, o leve farfalhar das saias produzia um som intimidador. O teto era alto demais para a pequena garotinha ruiva. Ela erguia a cabeça e breve vertigem forçava-a a buscar apoio nos assentos de forro imperial.
O som dos passos vindos da sala ao lado ecoaram no salão. Elline voltou-se e avistou ao fundo seu acompanhante de viagem.
- Miss Elline, precisamos ir.
- Não posso deixar o anjo sozinho, caro senhor.
- Anjo?

A garotinha apontou o dedo para os vitrais mais altos da capela à direita do salão. No espaço central estava a imagem de um anjo de bochechas rosadas e olhar piedoso, logo abaixo a inscrição "Ele está convosco". Elline não entendia aquela língua, nem tampouco sabia ler, mas compreendia que aquela fala era para ela, e com seu pensamento ingênuo tentava responder-lhe o agrado. O acompanhante ponderou, consultou o relógio de bolso e decidiu-se por deixar a menina em paz por mais uns instantes.
Sozinha na capela, ela conversa com o anjo.
- Se falar comigo, meu querido anjo, posso te ouvir. Compreendo tua angústia. Também eu gostaria de estar livre para brincar no jardim, colher flores amarelas e comer frutas saborosas ao fim do dia. Mas sei que meus desejos são muito pouco para ti. Tens asas e um coração imenso, de que lhe servem se nada podes ser além de um luminoso vitral?

Pequenas lágrimas desprendiam-se de seus olhos acinzentados.
- Mas saiba, puro anjinho, estás no alto!Para mim é como estar no céu. De onde estás, podes me ver aqui tão pequena, podes ver quem entra e quem sai, podes ouvir a melodia da orquestra nos dias de festa, podes saborear uma noite quente e estrelada. Já eu aqui tão pequena neste mundo tão grande, o que posso fazer? Aqueles que lá fora me espreitam não esperam me ver, querem sim uma chance de arrancar-me um fio de cabelo, de contar aos seus que possuem o fio real nas mãos... Meu amado anjo, sei que entendes minha dor, pois da tua entendo muito bem. E quando eu crescer, a coroa se agarrará ao meu corpo como pesados grilhões. Pouco mais do que hoje serei, mas serei ouvida então. Aguarde-me neste dia, meu amigo, pois voltarei para te libertar. Oh anjo, se pudesse te livrar das grades me concederia um desejo? Dê-me a língua-mãe para que todos me escutem, dê-me braços gigantes para que a todos eu possa acolher. Dê-me asas como as tuas, para que eu possa chegar mais rápido e atravessar os mares... Dê-me o manto invisível, para que eu possa correr atrás das borboletas nas manhãs de primavera.

O acompanhante suspira e volta devagar para onde a pequena se encontra. Ela está quieta agora, de cabeça baixa, deixando os cachos vermelhos caírem pelos ombros. Facilmente ele a toma nos braços e a leva pelos fundos, fugindo da multidão.

Um comentário:

natércia pontes disse...

ahá! te achei! que textos lindos! nao é a toa que teus olhos sao flores! hehe, um beijo e até amanhã.