quarta-feira, 12 de março de 2008

Orvalho

Um dia que amanhece um tanto frio, o sol parece não ter despertado ainda para sua função e, apesar da luz, brilha lá no alto fresquinho. Cara de verão das montanhas.
Só agora de manhã viram que ela chorara mais uma vez. À noite todos se recolhem às suas vidas, não ouvem os gemidos tímidos. Mas a bela rosa está lá, úmida e cabisbaixa, exausta em um leve cochilo que todos temem interromper.
Sua pequena parte envelhecida caída no chão, nas folhas algumas gotas relutantes em cair. Linda rosa que se acaba em dias... Fora injusta a distribuição das tarefas, fora injusto dar tanta beleza para tão pouco tempo. É doloroso não ser amado, mas é irreconhecível a dor de ser e perder tão cedo. Ver-se esvair deixando no ar apenas o perfume daquilo que já foi.
E logo a brisa acorda para mais um dia de trabalho, varrendo os estragos do vento boêmio, destruindo as pistas e levando consigo para onde não se sabe. Rosa acorda já sem lembrança. Olha o céu azul tão lindo e se enche de charme. Uma parte sua a menos e a cor viçosa das pétalas escondidas pode enfim tomar frente... e ela ainda é a mais bela.
Esquecimento ou fingimento, somente ao se recolher no fim da noite é que as lágrimas tornarão a cair pela perda de mais de si. Até lá, há um dia inteiro de veludo e perfume suave.
E a linda rosa espera a noite para chorar.

terça-feira, 4 de março de 2008

Sendo-me

É ela que sabe todas as minhas senhas, todos os códigos, tem a chave da minha casa e do meu cofre. Ela sabe a cor da minha alma e o peso das minhas pálpebras. Conhece o curso do meu rio de lágrimas... a seqüência das minhas palavras. Sabe quantas vezes respiro e sabe o que me faz parar de respirar. Conhece meu pulso, desenrola o emaranhado de veias, é ela que sabe quando o sangue circula mais rápido.
Ela entende o sopro do meu pensamento matinal, sabe o que me tira o sono. Conhece meus livros, meu paladar... sabe o que é música e o que me faz gritar. Ela lê as linhas da minha mão, sabe quando minhas unhas crescem, quando meu olho muda de cor. Conhece meus segredos de beleza, meus mistérios de feiura, escuta o meu silêncio, controla o vento que levanta meu vestido. Sente o cheiro da minha dor e sabe o peso dos meus ombros. Ela percorre a linha curva da minha coluna, sabe a resposta antes da pergunta. Ela mata os monstros debaixo da minha cama, toca minha canção de ninar... ela conversa com a minha preguiça.
Ela ouve meu estômago roncar, livra meus poros da poluição, lê meu riso ainda sorriso. Ela conhece meu ontem e escuta meus trovões. Ela salta entre minhas idéias, conhece meus lençóis.

Ela me é muito mais que eu. E se não fosse, quem seria eu afinal...