segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Tumor

Hoje acordei com aquele gosto na boca de de vez quem quando... esse gosto me lembra de um velho conhecido hipocondríaco que dizia "sentir gosto e cheiro estranho é coisa de câncer". Pode ser sim. Um velho tumor que volta e meia dá uma crescidinha, monopoliza umas áreas do cérebro e resgata sabores e perfumes.
E talvez nesse dia cinzento típico dos poetas deprimidos eu tenha pensado demais, voltado no tempo, ansiando me jogar no depois só pra ver o que vai acontecer e depois retornar tranquila e tomar decisões certas.
A sensação é igual a de sempre e a de todo mundo. De quando eu me sentava na platéia e assistia ballet soluçando de tanta frustração. De quando, só de lembrar daquela discussão que virou barraco que virou doença que virou rancor eterno sentia o peito apertar até quase sumir. E isso doía de verdade. De quando, quase ontem, ouvi o baque das malas no chão porque não tinha mais nada a ser ouvido. De quando vi aquela carta ser lembrada depois de quase 10 anos e senti o peso da responsabilidade de ser irresponsável. De quando tive que ir embora e chorei um mês de saudade e um mês de alegria.
Vontade doida de pedir desculpas mil vezes... e talvez já tenha pedido. Vontade de ser aquilo que ela sonhou quando tinha cabelos longos e corpinho de miss e namorava o cara magrinho que andava de fusca. Vontade de ser cor-de-rosa como ele sempre quis. Vontade de concluir aquele livro só pra hoje ler e rir. Vontade do cheirinho de gel e do batom de marca boa que marcava na bochecha. E da marca de dedo na máquina fotográfica. Vontade do chinelo que respira e de foto no caminhão azul. Vontade de café na estrada. Vontade de ver aquela vaca pastando na cidade.
Vontade do susto atrás da porta e da história da bruxa repetida até esgotar os finais.

Mas a vontade vai com a chuva... e eu vou ficar aqui.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Quando cai a noite

Pouco depois das oito da noite ela gostava de sentar no sofá e se aconchegar, esperando por sua novela. Gostava de tomar seu café devagar. Gostava de fazer cafuné no seu amor.
Um pouco mais tarde dessa vez, ela sentou no seu lugar habitual, chamou Cesinha e pôs-se a passar os dedos entre os anéis do seu cabelo fino e levemente dourado. Desta vez mais cansada, com um pouco de dificuldade devido ao ferimento enfaixado da mão direita.
Fazia um esforço, mas era recompensada. Seu prêmio era aquele sorriso de canto de boca que ele dava cada vez que ela lhe agradava desse jeito. Seu prêmio era os olhos castanhos semi-cerrados, o calor do corpo dele repousando no seu colo. Nesse momento era feliz.
Enquanto agradava seu amor, olhava ao redor. Os quadros nas paredes acolhedoras, o perfume das flores na janela, o tapete fofinho sob seus pés maltratados... Ele lhe dera uma vida de verdade. Lembrar da sua vida três anos atrás era até doloroso. Gritos, choro de criança, briga de vizinhos, panelas amassadas com sobras de carne dura... e o cheiro... lembrar daquele cheiro fazia o odor voltar-lhe às narinas. Aquele lugar fedia a esgoto, bicho morto, comida estragada.
Mas aí surgiu seu anjo, lhe arrancando da pele a cor imunda das ruas barrentas, tirando as vergonhas encrustadas nos nós do seu cabelo maltratado, escovando a dor da ignorância colada às suas costas sardentas, lavando a sordidez agarrada aos dentes amarelados.
Fez-se ela, mulher cuidada, sorridente e com brilho nos olhos. Que anda pela casa balançando os quadris contentes com a vassoura na mão, cantarolando músicas que só ela conhecia.
Os dias difíceis são passageiros agora. As dores são merecidas. Castigo é necessário de vez em quando, ela bem sabe. Mas as feridas agora saram rapidinho e ela nem liga.
Só lhe interessa o cair da noite para assistir sua novela, tomar seu café devagar e fazer cafuné no seu amor.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Gaiola vazia

Me disseram que a febre é só reflexo, é só parágrafo... E eu que perdi tanto tempo dizendo e achando ser explicação, fundamento, conclusão sem prévia e sem propósito. As têmporas doem um pouco mais a cada pulsação e gritar já é proibido, ato devasso, obsceno e inadequadamente enquadrado em desencaixes das moléculas no ar. E mesmo que eu tentasse, ao simples lançar da idéia, ela não espera e em perplexa forma foge de mim em vôo rápido e rasante o que para ela é apenas suave passeio.
Até mesmo a possibilidade de chamá-la já é vergonhosa, mal ouso tentar. É inútil se convencer de que fui quem pulou primeiro se ainda estou lá, em débil aceno à nuvem baixa, sonhando e buscando ainda ver a silhueta desenhada nos meus olhos em toda manhã quente e sonora.
Não... gritar não... É pecado... macula o canto incompreensível da queda.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

À prova

Ele arriscou umas palavras, mas não sabia falar inglês. Tampouco sabia falar. Ao encarar aquele rosto pequeno ele engolia seco, agitava as mãos em pedido cego de socorro, enquanto seus olhos explodiam em aflições e angústias.

Para que palavras com tanto olhar?

A garotinha sorria e em cada sorriso um tempo que já foi. Cada som infantil uma marca do passado que ele não saberia reconhecer. Poderia usar discursos, poderia apoiar-se em grandes nomes. Sim, o presente é tudo o que temos. Diga isso cem vezes sem gaguejar e tente ser dono dessa verdade. Fora das duvidosas palavras do mundo, ele apenas sabia que sim, passado é real. Passado dói, transforma e não se altera.
Passeio no parque, coca-cola, picolé e aqueles bichinhos de pelúcia que colam no vidro... subterfúgios nulos, retirados como modelo de um filme com final feliz e que nunca se aplica.

E ele sabe. Mas ela não. Ela só sorri e estende os dedinhos minúsculos que mais cedo foram rabiscados de caneta colorida e agora apresentam riscos gastos e pouco visíveis. E ele continua engasgado sabendo que aquele desenho vivo ele jamais verá.

Porque é assim que é

Livres para ver, sentir, chegar, fugir, provar...

Nada que se exija é digno de ser. Então que seja menos imperativa a voz, menos rijo o movimento. Negar as regras e se render à revolta banal, negar os padrões e descobrir onde mora a essência... e o que não é válido é apenas o que não é.

Porque é assim que é. Facultativo, sem portas e relógios. Apenas o velho e bom sorriso de boas vindas.