segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Primeiro amor

Mil idéias agitavam a mente do pequeno garotinho de cabelos escuros e olhos puxados iguais aos do pai. Mil movimentos a lhe provocar sorrisos, mil possibilidades de uma nova noite esgotada. Domingo ele pulava da cama com o ânimo que não lhe faria sentido anos depois. Expulsava as cobertas num chute, saltava em frente à janela e escancarava-a deixando o sol gritar na sua pele branquinha. Na casa de dois cômodos, todos eram movidos à luz solar e igualmente saltavam da cama sem o mesmo ânimo de antigamente.
Dia de feira. Parque de diversões para ele, comida no prato para todos. E lá seguia correndo com suas pernas de formiga para alcançar a pressa mau-humorada da mãe. No local, o irmão-grandão já ajeitava as barracas gritando palavrões e trocando piadas que ele não entenderia tão cedo. Logo a função começava e o mar de calçados pisados seguia em procissão desesperada, guiada pelos cotovelos e cabelos colados no pescoço.
O garotinho pulava atrás das bananas e tentava imitar as rimas. Mas o momento esperado chegava... Quando sua sombra esticada se aproximava do pé, lá ia ele correndo para a barraca de Josias, o cortador de carne. Agachava-se como um animal à espreita e ria baixinho de si mesmo.
Lá ao longe ele podia ver chegando... A multidão agitada se afastava e ele sentia-se capaz de atravessar muros com seus olhos. Sapatos rosados, pintados em flores, acima do chão. Alternavam-se em dança suave e não pediam licença. Eram cortejados, sabiam eles... o que lhes davam mais graça.
O garoto tinha aquele brilho no olhar que mais tarde desapareceria. E enrubecia-se todo ao olhar seus chinelinhos sujos tão indignos.
À noite, ao deitar, prometia em silêncio que um dia compraria sapatos bonitos de gente grande.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Dois pares

Quando os pares se cruzam, o mundo fica estranho. Eram dois: um par de um azul intenso, de profundidade oceânica; o outro negro e malicioso, sempre dizendo mais.
Lá fora, vendavais carregados de folhas e poeira cinzenta circulavam em dança agitada... o prenúncio da desordem. Mas não importava. Importavam os raios, deles o par negro fugia, assustava-se sem reflexos, umidecia-se antes de tornar a fixar. Já o azul, destemido, continuava firme, sem interromper o trajeto imaginário, a linha que não se curvava.
Os negros diziam, com seu leve tom sedutor, que não sabiam mais... Os azuis rebatiam depressa, tentando destruir a incerteza, sem molejo para torná-la aliada.
Guerra divertida, a dos pares, que por inexplicável laço não conseguiam desviar. Revidavam-se em jogos eternos, sem nunca trair a si próprios. Afinal a traição era relativa, os negros valiam-se disso com toda propriedade. Enquanto que os azuis, não ingênuos, pescavam falseadas breves e daí tiravam seu poder.
E os ventos em revolta circulavam cada vez mais rápido, medindo forças, apertando o cerco. Ventos que sonham redemoinhos, que almejam tufões furiosos... nem assim os pares se afastam. Acabam-se as forças ao seu redor, a majestosa energia inabalável permanece em seu trono provando não haver possibilidade de derrota...
Não nesta vida, não quando os pares se cruzam.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Noite de festa

Foi quando todos dormiram e os motores do galpão ao lado foram desligados... foi quando o cachorro cessou seu latido e as madeiras do chão pararam de estalar... quando a pilha do relógio da parede acabou e quando os carros pararam de passar... Quando só o som da sua própria respiração ecoava na casa e parecia que poderia ser ouvido além do Atlântico.
Mas não era silêncio o que ela tinha ali, eram vozes, muitas vozes, acompanhadas de ruídos escandalosos e risadas altas debochadas e sarcásticas. Com os olhos colados no teto ela tentou definir quem dizia o quê e assim separar os diálogos em arquivos diferentes, talvez alternando para compreender o princípio daquilo... ou até mesmo para descobrir se teria fim.
E assim o sono não se encorajava, passava o tempo e as pupilas, acostumadas à escuridão da noite, brilhavam enormes como olhos de gato. Prendeu um espirro e ouviu um "saúde" de uma voz jovial e dinâmica. Sorriu e agradeceu com a cabeça. Aos poucos foi se enturmando na festa sonora, apurando as conversas e quase ousando se intrometer.

Pontualmente às 6h da manhã, no apartamento empoeirado do 4º andar, a luz atravessa a sala de estar para avisar que a vida recomeça lá fora. As despedidas acontecem todas ao mesmo tempo e, de repente, tudo está vazio mais uma vez. Sozinha na cama estreita com seus velhos lençóis ela fecha os olhos e adormece.
Na sua mente, copos vazios e restos de comida pelo chão aguardam a próxima noite de festa.