sábado, 5 de dezembro de 2009

Nos vemos no inferno

Seu bigode distorce as imagens diante do nariz. Gigante medíocre, o grande W. maquia-se de mártir e pinga algumas lágrimas a cada copo de gim. Quem acreditaria?

Seu sangue doente faz da extensão das suas veias humilhados escravos. Sem outra alternativa, mergulhados na crença dos laços, correm como ratos atrás dos rastros do chinelo de pano, lambendo a poeira, aspirando as cinzas, agradecendo por permitir-lhes dois rins sadios. O mestre se recolhe em sua jaula, cadeado em mãos, filetes de gelo arremessados aqui e ali. Estava entre os seus poderes. Quem duvidaria?

Seu palácio cercado de ouro cheira à merda. Entre as baforadas, cria novos venenos e puxa tudo para o rosa, sem lembrar que o sol entra quando bem quer entregando todo o jogo. Enquanto o gênio aguarda interessados em publicar sua obra, desliga-se da lógica e desenha o futuro do universo. É dele a posição das peças, é com ele que se guarda a chave. Peça permissão, mas não seja escuro, não tenha ideias, e logo lhe será estendido o mundo.

Aguardo seus restos de pele que apodrecem recusados pelos urubus.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O terceiro caminho

Se a roupa pesada não perturbava mais, muito menos as raras gotas grossas de chuva nos cabelos enroscados.
Não tinha necessidade de estar naquele estado, mas ela bem que gostava de causar náusea aos estranhos transeuntes, já sabendo que aquele não-olhar era o retorno mais extenso que receberia até a virada da esquina. Ou até o próximo movimento excêntrico.
Enquanto muitos meditavam sobre almofadas fofas e som ambiente, ela sentia a veracidade na pedra.
Pensar longe do mundo é fácil, dizia sempre, quero ver estar na rua e tentar desconectar.

Mas sua teoria ignorada pelos livros não tinha futuro, de qualquer forma estava lá toda vez.
A bem da verdade, era deveras divertido o que vinha percebendo nos últimos anos. Enquanto praticava seu ato de desonra com louvor, via-se compartilhando a mente, absorvendo uma parcela da pressa alheia e jogando de volta um desinteresse completo pelo universo cerimonial que se formava ao seu redor.
Como era de se esperar, por baixo dos panos sempre havia uma razão. Desentendida ou arredia, mas era certo que estava lá. E como tudo é medo ou dor nesse quesito, sentia-se envergonhada no aprofundamento.
Pois a cada dia sua dor aumentava e diminuia ao mesmo tempo, na mesma medida, como se maior e menor não fossem opostos. Eram dois fenômenos que juntos seguiam para uma terceira direção, advinda de uma estagnação doentia e sem chances de se revelar.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Ao ver Marina passar

Pensar simplesmente não era o forte dele. Garoto magrelo, roupas fora de moda e óculos de aros escuros lhe cobravam um perfil mais próximo do intelectual. Coisa que não era nem de longe.
Definitivamente seus olhos eram pálidos. Inesperadamente seus gestos imediatos alcançavam pouco mais do que uma alusão ao possível. Assim, Pedro constrangia a cada ranger dos dentes e permitia invasões ao seu íntimo sem afetar uma construção tanto mais profunda do que um mero reflexo.
Mas é certo que se valia de toda a vantagem da imagem grosseira de menino prodígio. Tal considerado, no máximo, poderia referir à inquietação perene, ações que lhe emprestavam um ar assim... digamos, de raras percepções.
Pedro andava chutando pedras invisíveis para fingir-se concentrado enquanto sua mente saltitava de momento em momento, demorando-se ínfimos segundos em cada desenrosco, cada qual levando a lugar algum. Ria-se de risos alheios, absorvia um pouco de fofoca diária, estendia-se no exercício do nada e cansava-se do ritmo das formigas.
Ao seu redor pessoas se desmanchavam inteiras e as manchas coloridas iam se tornando opacas, alternando os encaixes antes de se recompor.

E conhecer Marina lhe roubou longos 4 minutos de contemplação.

Tempo que até hoje busca por aí, barganhando até promessas e dando ao ar uma chance de preeenchê-lo enfim.
A ele, a forma harmônica de lábios pequenos reservou uma vida escondida sob os mistérios do desencontro. Ele não teria como saber de antemão, mas já duravam bem mais seus raciocínios ao formular equações pulsantes. Desprovido do dom da observação, ele deixara de perceber a quantas andava sua mente ao atravessar a ponte e adentrar o caminho das flores de campo trajando somente branco.

Perto daquelas doces curvas seus gestos já não eram mais tão curtos e parte de seus dedos se arriscaram por entre os cachos brisados encontrando a linha de um pensamento que nunca havia se permitido seguir.

Ao ver Marina passar, ele resolveu se casar.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O mundo de Norma Flor

Quem conheceu Norma Flor sabe que a dor pode assumir o posto de infinito. Norma Flor teve o azar de ser e estar. Algo que nunca poderia mudar, mas que hoje arrasta sua existência com a aspereza de uma mão calejada de tantas agulhas.

Sua vida era medida em metros quadrados. Cerca de 300 ou menos.

A população do seu planeta era sua clientela rabugenta e apressada. Chegavam às pilhas depositando sacolas e levantando poeira na velha mesa parcialmente devorada por cupins. Norma Flor tossia implicante. Ninguém notava. Os habitantes de Norma Flor queriam tudo pra amanhã antes das 5h. Entravam e saiam e ela nem sabia mais quem era quem. Bastava deixar tudo sempre pronto, cada um sabia o que lhe cabia melhor.

E Norma Flor baixava a cabeça diante da velha máquina de costura e pedalava como nos velhos tempos. Porque eram apenas esses que ela conhecia.
Pedalava rápido, os pés desenhados no ferro. Seu quadril era a base; seus dentes, a agulha por onde passava todo o tipo de arte. Do pano de linho amarelado à seda mais pura. Ela seguia mordendo os pontos, desenhando as formas como estradas que nunca chegam à praia.

Seu planeta tem uma cozinha velha, uma garagem cheia de tralhas, um banheiro enorme com uma banheira nostálgica, um quarto comum e um cômodo fechado. Fechado por quem? Não por Norma Flor.
Norma Flor não é o tipo de pessoa que fecha um cômodo. Mas se estiver fechado, ela nunca ousaria abrir. E agora, por mais que os anos voem, sabedoria e grandeza se fundem moldando uma nova razão: o esquecimento.
Hoje, 35 anos mais tarde, ela segue produzindo seu som de máquina velha dia e noite, deixando tudo pronto até as 5h.

Mas o povo sacudido do seu planeta não se aguenta e forma filas suspeitas, cada um mais decidido que o outro a quebrar o Esquecimento. Empurram-se, entram sorrateiros, cochicham, resmungam e esbarram nas coisas. Os habitantes de Norma Flor não querem portas fechadas.
Seus súditos fofoqueiros escancaram a porta selada pelo tempo e contemplam um espaço branco e vazio. À exceção das teias de aranha, nada há para ser compartilhado com pipoca. Todos saem aos poucos mergulhando em suas rabugices. Resta Norma Flor parada diante do vão maculado, pequenina e enrugada, franzindo a testa para segurar a coluna que já encolheu depois de tantos anos sendo máquina. Olhos verde-claros pingando lágrimas, respira rápido e profundo para não deixar o ar fugir.

Guardo-o todo comigo e torno-me você. Norma Flor deixou-se absorver pelas paredes e fechou-se.

Na mesa velha ao lado da máquina de costura, pilhas e pilhas de sacolas acumulam inquietando a poeira e nada mais.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Apenas mais um josé

Sob o sol do trigésimo terceiro por-do-sol daquele inverno, o homem de estatura baixa buscava algum tipo de conforto. O suor ácido e viscoso colava entre as dobras do pescoço manchado, denotando certa ausência de higiene para a qual ele nem mais ligava. As mãos espalmadas como em estado de meditação buscavam os raios fracos, que em meio às sombras dos edifícios marcavam vincos profundos e cortes mal cicatrizados.
Num dado momento cogitou ir para casa. Mas a imagem referencial surgia turva, em caminhos alternados, talvez entrecortados ou mesmo invadidos e alterados por uma civilização varrida dali. Mesmo assim buscou a chave minúscula que levava junto ao peito, presa por um resto de barbante. Pensou com ironia na fragilidade daquela peça, produzida e reproduzida tantas vezes que já nem contava mais, cada cópia associada a uma perda... Criara sem querer um significado novo para aquele metal retorcido.

Tanta reflexão afastou a pouca luz que restava, dando lugar ao vento gelado, tão cortante quanto o barulho de buzinas e de gente. Era toda a gente que saía das caixas. Gente de calçada, gente de cadeiras, gente de risadas... De grupos, de duplas, de filhos pendurados... Gente de ninguém como ele.

A boca seca gritou saudade de álcool e limão. Ao seu lado, gente de camisa xadrez e livros tagarelava teorias desmedidas, entediando uma garota avoada que enchia a cara para fingir que não entendia nada daquilo. Ele se encheu de compaixão por aquela pessoinha deslocada, chegou-se mais, pediu cigarros e bebida. Pôs-se a entrete-la com uma conversa qualquer, à qual era óbvio que ela se dedicava bem mais.

E ficaram assim por horas. Brincando de pensadores, falando qualquer asneira intercalada com profundas compreensões instantâneas. Dessas que surgem preciosas em momentos tão perdidos e dão mais sentido ao pensamento coletivo... Mas que geralmente são esquecidas logo mais.

Na virada do dia a boca cansa de abrir e fechar. A língua amolece e os olhos piscam mais devagar. A garota tem mais pique, é bem verdade, mas ele bem que aguentou firme.

Você não vai para casa?, ela pergunta já amiga de longa data. Para quê? Logo mais tenho que voltar. Então me ajeito por aqui mesmo. A resposta satisfaz e ela vai embora em seu passo lento. Ele puxa o cobertor e adormece com um sorriso de novas ideias. Logo amanhecerá e apenas mais um josé dorme sereno na calçada.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Desconstrução III

Estou meio cansado, olhos embaçados, parece que há fumaça ao meu redor. Escrevo assim devagar, pois dói-me a mão ainda com bolhas de hoje cedo. Um caixote mal arranjado fará o papel da minha célebre mesa de jantar... Dou uma risada que sai mais alto do que esperava ao pensar em minha mãe. Penso forte, denso, ela quase está aqui à frente perambulando por entre os tijolos e a areia com um ar contrafeito e nariz vermelho de alergia. “Deve ter milhares de gatos por aqui, sabe que sou alérgica a gatos”, brada ela mal se equilibrando no alto de um salto 15.
Meu riso me assusta e num pulo deixo a caneta cair, mas o som parece vir de algo muito mais pesado. Formigas ao chão soam-me como uma debandada de búfalos.
À minha frente não há mais a mesma paisagem e, embora esta seja repulsiva, baixo a cabeça e sigo escrevendo com um lábio mordido ornado por um fio de sangue seco.
Pede-se licença e arranca da mente a marca de batom, a casca de esmalte cor de café. Lindas mãos pousadas sobre fino tecido que fora arremessado com tanto desprezo sobre a cama recém feita com cheiro de chá de maçã. Intempestiva forma fugaz que lança ao ar um sopro de beleza inexplicável, incompreensível encanto no ódio mais primitivo.

Na cena destruída estico as pernas buscando um cigarro, depois os fósforos, esfregando com insistência os olhos, quase acreditando na opacidade do cenário. Sou um homem criança dentro de um corpo adulto retocado. Acima disso apenas o vazio; e abaixo, o vácuo. É isso que me coloca onde estou e não posso cuspir diante de tamanho favor que a vida me concede, jogando-me para longe de antes, dando-me na feiúra e na poeira a sorte de reconstruir as peças encaixadas sem base, tão incrível mosaico que logo desmontaria por completo.

Dobro meu corpo em direção ao chão, vejo-me ali naquela pedra rompida. Agora que monto virilidade, empilho empáfia. Mais um tijolo fora do lugar.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Sem controle

Você está pensando o quê? É chegar, sentar, colocar os pés para o alto, acender seu cachimbo e vomitar baforadas no espelho julgando-se capaz de compreender tudo o que lhe cerca.
Enquanto as folhas levantam vôo logo ali você não sabe sequer quem lhe chegou por trás aplicando aquela peça, rasgando a lapela do seu casaco desajeitadamente enquanto tentou sussurrar-lhe um segredo.
Assim algumas palavras desconexas vagam até hoje na sua mente arriscando algumas relações improváveis, unindo-se, invertendo-se, divertindo-se.

É porque, dentre todas, é a mais bela, a mais forte, a mais segura que você tenta alcançar esticando-se na ponta dos pés denotando uma falta de prática patética diante de dez gargalhadas contidas.

Então, você está pensando o quê? Você não sabe mais o que fazer.

Ou nunca soube.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Seu moço

Ei, moço,
Você que chega a passos mansos envolto em trapos brancos meio rasgados, já suado em prantos soluçados. Coloca um pé à frente do outro sem métrica, sacode os bolsos com o movimento nervoso das mãos elétricas, tateia por um cigarro, encontra uma foto velha de sua amante histérica que em cantos melosos torneados por cílios postiços colocava-lhe as rédeas.

Ei, moço,
Aonde você vai agora? A chuva está mais forte e você caminha sem rumo, sem sorte, parece a cada dia despertar em busca da morte. E se ao norte sua forma se esvai e você ainda vagueia por entre brisas e poeira, sem esbarrar, sem descansar, sem desviar do rumo imaginário, me diga moço: onde encontra seu fim?

Pois eu aqui não sou ninguém, seu moço, mas me permita dizer-lhe poucas palavras tolas... Caso tudo isso lhe subir pela garganta, entenda que de nada adianta seus passos eternos para diante do ontem. Você apenas se põe a andar em círculos, pois é só o que sua mente conseguirá comandar. Então recolha seus joelhos batidos, seus ouvidos feridos de tanto silêncio e volte para dentro de si até a chuva passar.

terça-feira, 24 de março de 2009

Antes de agora

O que você vive está estampado na sua cara. Essa cara é a sombra do que já se fez...

Do que já se viu.

E não há como apagar essa marca. Você tenta quebrar, mas o tecido é tão leve que não se rompe na mais alta queda...

E não se rasga no mais firme impulso.

O que você fez e criou cresce a cada momento e a única ação o impele a carregar e arrastar dia-a-dia por entre breves descansos.
E você tenta recomeçar. É um recomeço oposto ao começar de novo... Como um reinvento inverso.

O retrocesso.

E é caminhando a passos curtos para trás que você impede a queda.

Mas jamais descobre o que está atrás do muro.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Elline - 1821

O despertar era sempre um momento de delicada transição. Aos poucos o sono se acabava, esgotando sua magia e dando lugar à vivacidade contida na face aquecida. Esse momento sempre a conduzia em leves ondas mornas. A cada sonho uma carga de sensações tão densas e tão profundas que garantiam um dia inteiro de refúgio.
E tão logo o sono findava, Elline abria os olhos lentamente envolta em uma aura espessa avermelhada que tomava seu quarto inteiro e entrava pelas narinas e pelos poros, parecendo arrancar-lhe daquele lugar. Por vários minutos a confusão da chegada à realidade lhe envolvia completamente e ela ficava lá quietinha, absorvendo cada odor, cada espasmo de surrealidade num desejo de agarrar-se àquilo para que não se perdesse jamais.
Fechava então os olhos novamente tentando reviver tudo o que se passara, buscando seu sentido e traduzindo o incompreensível em vagas impressões. Ao selar as pálpebras sentiu o resgate da memória de um sonho reincidente. Ela estava lá. Não era seu corpo, não era seu rosto, mas sabia que era ela. Sob seus pés um chão desconhecido, como se a terra perdesse seu significado e estivesse presente através daquela linha ondulada repleta de grãos minúsculos.
No seu sonho, Elline não falava, não via, não ouvia. Eram apenas impulsos invisíveis a dominar o espaço.
Era como que estivesse a pegar o vento entre as mãos e ouvir-lhe uma cantiga de ninar.
Com os sentidos desconexos a atmosfera alternava em cores, e cada cor um perfume. Por poucos instantes o cheiro suave dava lugar a odores amadeirados que lhe faziam torcer o nariz pela simples lembrança... mas logo cessavam.
O desejo forte caía-lhe como uma rocha no peito e ela se contorcia, por hora tentando evitá-lo em constrangimento infantil, para depois recebê-lo de braços erguidos respirando fundo e guardando em si cada tremor com um sorriso.

Ao fim, ela suspirava. Erguia-se da cama e logo a nuvem da cor dos seus cabelos era expulsa pelos movimentos rápidos e bruscos das arrumadeiras que invadiam seu quarto.

Elline mal podia esperar o anoitecer.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Aos que eu não tenho mais

Até pouco tempo atrás eu tinha um discurso pronto na língua. Dores e expressões que permeavam um senso comum de caixeiro viajante. Uma impressão obrigatória do que ficou depois do salto. E depois do tombo.
Era melhor antes, agora eu estava velha. Havia perdido o tom. Já era tarde e toda razão da minha insônia e do meu cansaço eterno encontrava-se escondida à meia-noite com a lógica insípida e entre agarramentos conspiravam loucuras.

Bastante confortável.

Então por que me deparo hoje com uma porta enorme no meio do caminho que faço todos os dias? Imenso vão surgindo naquela abertura desleixada. A sensação, chegando lá, é de que eu sempre fora míope sem saber. E então acontece aquele flash e tudo vai se repetindo devagar com a certeza novata insistindo que agora as falhas iriam se preencher fechando o mosaico e trazendo um pouco de sentido... Ou tirando bastante do óbvio.
Pois agora, um pouco aliviada nos ombros, estou tentando juntar umas palavras que se traduzam em leituras sem vício. É aquela esperança boba de alcançar o bolo que está em cima da geladeira.

E eu que sempre pensei que a consciência fosse libertadora, hoje percebo que é uma reles condicional.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Idéia imediata

Quem diria que eu me encontraria hoje nesse corpo mirrado de fala resmungada e mente no repeat.

Assim estou. Sentado, sentindo e transpondo toda a minha velhice desde que desisti de caminhar para guardar as gotas de energia que a vida me dava em pingos miseráveis semanais... Os olhos parecendo não ver, talvez em protesto pela cegueira de uma geração.
Acomodo-me entre as tábuas com meus ossos que perderam a proteção e agora esperam a ordem para desmoronar. Mas eu não me importo porque não dói. Pelo contrário, sinto conforto na rigidez insegura da minha estrutura oca e faço pirraça me encurvando um pouco mais. Olho para os pombos com fome e para a mulher gorda que finge sofisticação. Se fosse para comer talvez ela fosse mais apetitosa, mas a questão toda é que eu prefiro os bichos mesmo.
Passa o jovem atlético correndo descompassado: é seu pescoço que virou para acompanhar o ritmo daquela colegial com quadris de criança. Meu ouvido peludo capta um choro de bebê que mais se assemelha a uma gata no cio e assim desperta minha fome novamente.

Talvez devesse tomar um café da manhã de vez em quando...

O fato é que não lembro de estar em outro lugar que não nesta praça de 5 metros de diâmetro em frente a uma igreja meio caipira que mais recebe famintos em busca de hóstia do que fiéis em busca de uma carreira de reza. E nessa onda de ficar sempre aqui esqueço a hora de ir.

Foi quando me deparei comigo de pé em um dia de garoa com sol porque não encontrava o banco. E nem a praça. Nem mesmo aquele cheiro agridoce de feijão com detergente da velha de muletas. Foi aí que lembrei de voltar.

Mas agora não me pergunte mais. Não lembro bem se voltei ou não.