terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Fratura exposta

Não era a primeira noite que acordava de sobressalto. Um beliscão nos ossos internos do ouvido confundia os sentidos e por um segundo não sabia ao certo se estivera mesmo dormindo até então. Na meia luz observava aqueles contornos de borboleta. Deitada de costas, ela ressonava mergulhada nos seus habituais sonhos lúdicos. O desenho dos seus ombros provocava-lhe um fascínio quase hipnótico. Eram como asas, em sua irresistível fragilidade que quase implorava o toque. E mesmo sabendo que poderia se romper tão facilmente, deixava-se afagar sem qualquer pudor.

Ele acordava cedo demais. Vestia-se sem muito cuidado e saía em silêncio para procurar emprego, muitas vezes encontrando outras coisas pelo caminho. E só quando o sol desistia e punha-se a deitar que ele tomava o rumo de casa. Escondido sob o hálito de carvalho, um olhar de cansaço forçado, assim a desculpa diária estava garantida.
Mal cruzava o portão e seu corpo era envolvido por aqueles braços finos e brancos. O perfume de alfazema pingava em sua camisa surrada ao ganhar aqueles lábios. Todos os dias como se fosse o primeiro.
Ele esboçava um sorriso: uma fratura exposta. E ela aceitava com duas doses extras de açúcar. Ouvia-lhe todas as histórias, todas as recusas de cada dia. Caprichava na camisola, afagava-lhe os cabelos, arriscava, vez ou outra, um pedido gentil. Ela, que escolhera a vida da doação, que trabalhava perto de casa para levar o pequeno Ernesto para a escola, que acompanhava o crescimento das colméias, que lhe esperava com café e chinelos de pano. Ela, que era a razão de suas vergonhas, dormia tranquila e plena.

Então, a cada noite em claro, ele pensava que a amava mais pela expectativa de aprender a amar do que pela compreensão absoluta do sentido. E ele, que só sabia amar com culpa, tirava-lhe os cabelos do rosto e sussurrava-lhe um pedido de desculpa quando tinha certeza de que não seria ouvido. Quem sabe sua mente relaxada capture o momento e ele passe a frequentar seus sonhos?

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Ela fala com as flores

Apesar de o vento sul ter acordado naquela manhã com tanta vontade de ser, para um dia que começava assim meio cinzento era até estranho que ela estivesse tão feliz. Mas a paisagem que se formava diante da sua janela tinha algo de nostálgico. Na realidade uma sensação conhecida sobre algo que nunca fora vivido. Coisas de uma mente em constante reforma.
Assim, depois de tantos anos tendo rachaduras como vista, dando-se por satisfeita com os fragmentos de cal e gesso absorvidos durante as fungadas saídas dos lençóis, não esperava que algum dia seriam pintadas cabras ao fundo. Vejam só, cabras!

Desse jeito até poderia perdoar as esquisitices de um povo tão simplório. Talvez os caprinos fossem a moeda local.

Saindo cedinho reatava os laços com o sol, essa sua timidez própria dos dias frios lhe fazia sorrir mesmo antes de despertar completamente. Na mão direita um copo de café fervendo, na mão esquerda, atrapalhada, buscava os óculos escuros para poder olhar o céu. A promessa de passos mais lentos era derrubada pela urgência costumeira, despropositada porém. Enfim, algo teria que continuar no ritmo dos seus pensamentos, já que o equilíbrio se mostrava fundamental nesses últimos meses.

Cruzando com pássaros bem resolvidos e flores que alcançavam seu ombro, ela presta atenção nos detalhes. Apenas alguns naquele dia. Outros ficariam para os próximos, pois não era possível degustar tantos elementos sem evitar que seus sabores passassem informações equivocadas na mistura. Pouco antes de alcançar o bonde que perambula preguiçoso pela via principal, ela sente um perfume tão ou mais familiar que o cheirinho de creme de rosto da mãe. Pára um instante, segura a cena. Ao seu lado a chance de resgatar uma velha amizade. De ombros para o ridículo, ela não resiste:

- Bom dia, Sr. Girassol.

E seguiu caminho abafando um risinho infantil.