quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Eterno futuro

Fitando-me diante do espelho eu percebia a quantas andava aquele corpo largado pelo tempo. Afinal, já se iam tantos anos desde que parei de contar os centímetros do quadril. Arriscava-me a mergulhar nas justificativas infames dos perdidos dias de infância, quando o que menos pesava era a vaidade e, só por isso, era-se mais feliz. Não sabia bem ao certo se isso servia como explicação, mas no momento contagiava os lábios tal lembrança e aos poucos eu esboçava aquele sorriso que não tinha tempo.

Quando pequena, as marcas não foram duras, mas poderia perfeitamente esconder-me nas rachaduras dos anos de trovoadas. Tinha meus cinco ou seis anos, figura magrela e descompromissada metida em camisolões de linho. E não há como voltar no túnel sem referir a memória aos grandes e duros bigodes do meu pai.

Naquele dia tumultuado, eu escapara dos olhos esticados da mãe para invadir o quarto proibido. Todos estavam na sala conversando alto, os homens bebendo sem medida. Empurrei a porta pesada e respirei uma atmosfera sólida. Tudo ali estava tão morto quanto ele. Olhei em volta e os quadros velhos nas paredes não ligavam para a assimetria, contrapondo com as dezenas de quinquilharias perfeitamente equilibradas sobre a penteadeira, o armário, as prateleiras e a cabeceira da cama. Sobre os lençóis grossos da fazenda estava o corpo esticado desenhando uma silhueta montanhosa, a barriga fazendo sombra com a luz amarela do criado mudo. De resto, pouco mais consigo lembrar além dos dedos engalfinhados sobre o peito inerte. Seu bigode estava lá também, compondo o visual severo, desta vez sem a testa franzida costumeira. Apenas a representação bruta de um escovão sobre a boca calada.

Subindo na ponta dos pés, uma força que não busquei controlar fez com que eu estendesse a mão em direção aos pêlos que jaziam no rosto do meu pai. Coisa que nunca fizera em vida, apesar do coração estar aos pulos eu trazia certo divertimento pelo feito quando senti o bigode espetar meu dedo. No susto, tratei de sair dali em um pulo só. Já do lado de fora, constatando que ninguém dera pela minha investida, postei-me no corredor. Os pés no chão encurvados um contra o outro. As mãos enroladas nas costas, a esquerda guardando a direita.

O estranhamento do dia não tardara encontrar seu sentido, quando pela semana afora dei pelo lugar sempre vazio na ponta da mesa às refeições. A mãe sustentando bolsas d’água sob os olhos fundos, a Naná trazendo o feijão sem a gritaria de antigamente. Sim, porque quando temos pouca vida, antigamente pode ser ontem e o futuro tem a dimensão do infinito.

Não suspeitem da minha dificuldade de compreender as coisas à minha volta. Eu pouco me dedicava a pensar, é bem verdade. Mas entender o real significado da morte a mim era descabido. Assim, a inocência se perdeu com os fios compridos desprendidos da minha nuca enquanto Naná me penteava para o colégio.

- Meu pai morreu né?

Com olhar doce, a mulher cujas mãos me colocaram no mundo, conforme fui saber mais tarde, já falava se preparando para o momento: - sim, ele morreu.

- Mas ele morreu a semana inteira?

Um instante e toda simplicidade de Naná captou meu raciocínio fraco e suspirou: - sim, todos os dias e todas as noites.

Eu ouvi profundo.

- E ele vai parar de morrer algum dia ou devo me acostumar com isso?
De resposta, ganhei um abraço e me livrei da escola por uma tarde inteirinha.

Agora, diante do espelho, ocorreu-me: me acostumei enfim.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Fratura exposta

Não era a primeira noite que acordava de sobressalto. Um beliscão nos ossos internos do ouvido confundia os sentidos e por um segundo não sabia ao certo se estivera mesmo dormindo até então. Na meia luz observava aqueles contornos de borboleta. Deitada de costas, ela ressonava mergulhada nos seus habituais sonhos lúdicos. O desenho dos seus ombros provocava-lhe um fascínio quase hipnótico. Eram como asas, em sua irresistível fragilidade que quase implorava o toque. E mesmo sabendo que poderia se romper tão facilmente, deixava-se afagar sem qualquer pudor.

Ele acordava cedo demais. Vestia-se sem muito cuidado e saía em silêncio para procurar emprego, muitas vezes encontrando outras coisas pelo caminho. E só quando o sol desistia e punha-se a deitar que ele tomava o rumo de casa. Escondido sob o hálito de carvalho, um olhar de cansaço forçado, assim a desculpa diária estava garantida.
Mal cruzava o portão e seu corpo era envolvido por aqueles braços finos e brancos. O perfume de alfazema pingava em sua camisa surrada ao ganhar aqueles lábios. Todos os dias como se fosse o primeiro.
Ele esboçava um sorriso: uma fratura exposta. E ela aceitava com duas doses extras de açúcar. Ouvia-lhe todas as histórias, todas as recusas de cada dia. Caprichava na camisola, afagava-lhe os cabelos, arriscava, vez ou outra, um pedido gentil. Ela, que escolhera a vida da doação, que trabalhava perto de casa para levar o pequeno Ernesto para a escola, que acompanhava o crescimento das colméias, que lhe esperava com café e chinelos de pano. Ela, que era a razão de suas vergonhas, dormia tranquila e plena.

Então, a cada noite em claro, ele pensava que a amava mais pela expectativa de aprender a amar do que pela compreensão absoluta do sentido. E ele, que só sabia amar com culpa, tirava-lhe os cabelos do rosto e sussurrava-lhe um pedido de desculpa quando tinha certeza de que não seria ouvido. Quem sabe sua mente relaxada capture o momento e ele passe a frequentar seus sonhos?

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Ela fala com as flores

Apesar de o vento sul ter acordado naquela manhã com tanta vontade de ser, para um dia que começava assim meio cinzento era até estranho que ela estivesse tão feliz. Mas a paisagem que se formava diante da sua janela tinha algo de nostálgico. Na realidade uma sensação conhecida sobre algo que nunca fora vivido. Coisas de uma mente em constante reforma.
Assim, depois de tantos anos tendo rachaduras como vista, dando-se por satisfeita com os fragmentos de cal e gesso absorvidos durante as fungadas saídas dos lençóis, não esperava que algum dia seriam pintadas cabras ao fundo. Vejam só, cabras!

Desse jeito até poderia perdoar as esquisitices de um povo tão simplório. Talvez os caprinos fossem a moeda local.

Saindo cedinho reatava os laços com o sol, essa sua timidez própria dos dias frios lhe fazia sorrir mesmo antes de despertar completamente. Na mão direita um copo de café fervendo, na mão esquerda, atrapalhada, buscava os óculos escuros para poder olhar o céu. A promessa de passos mais lentos era derrubada pela urgência costumeira, despropositada porém. Enfim, algo teria que continuar no ritmo dos seus pensamentos, já que o equilíbrio se mostrava fundamental nesses últimos meses.

Cruzando com pássaros bem resolvidos e flores que alcançavam seu ombro, ela presta atenção nos detalhes. Apenas alguns naquele dia. Outros ficariam para os próximos, pois não era possível degustar tantos elementos sem evitar que seus sabores passassem informações equivocadas na mistura. Pouco antes de alcançar o bonde que perambula preguiçoso pela via principal, ela sente um perfume tão ou mais familiar que o cheirinho de creme de rosto da mãe. Pára um instante, segura a cena. Ao seu lado a chance de resgatar uma velha amizade. De ombros para o ridículo, ela não resiste:

- Bom dia, Sr. Girassol.

E seguiu caminho abafando um risinho infantil.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Nos vemos no inferno

Seu bigode distorce as imagens diante do nariz. Gigante medíocre, o grande W. maquia-se de mártir e pinga algumas lágrimas a cada copo de gim. Quem acreditaria?

Seu sangue doente faz da extensão das suas veias humilhados escravos. Sem outra alternativa, mergulhados na crença dos laços, correm como ratos atrás dos rastros do chinelo de pano, lambendo a poeira, aspirando as cinzas, agradecendo por permitir-lhes dois rins sadios. O mestre se recolhe em sua jaula, cadeado em mãos, filetes de gelo arremessados aqui e ali. Estava entre os seus poderes. Quem duvidaria?

Seu palácio cercado de ouro cheira à merda. Entre as baforadas, cria novos venenos e puxa tudo para o rosa, sem lembrar que o sol entra quando bem quer entregando todo o jogo. Enquanto o gênio aguarda interessados em publicar sua obra, desliga-se da lógica e desenha o futuro do universo. É dele a posição das peças, é com ele que se guarda a chave. Peça permissão, mas não seja escuro, não tenha ideias, e logo lhe será estendido o mundo.

Aguardo seus restos de pele que apodrecem recusados pelos urubus.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O terceiro caminho

Se a roupa pesada não perturbava mais, muito menos as raras gotas grossas de chuva nos cabelos enroscados.
Não tinha necessidade de estar naquele estado, mas ela bem que gostava de causar náusea aos estranhos transeuntes, já sabendo que aquele não-olhar era o retorno mais extenso que receberia até a virada da esquina. Ou até o próximo movimento excêntrico.
Enquanto muitos meditavam sobre almofadas fofas e som ambiente, ela sentia a veracidade na pedra.
Pensar longe do mundo é fácil, dizia sempre, quero ver estar na rua e tentar desconectar.

Mas sua teoria ignorada pelos livros não tinha futuro, de qualquer forma estava lá toda vez.
A bem da verdade, era deveras divertido o que vinha percebendo nos últimos anos. Enquanto praticava seu ato de desonra com louvor, via-se compartilhando a mente, absorvendo uma parcela da pressa alheia e jogando de volta um desinteresse completo pelo universo cerimonial que se formava ao seu redor.
Como era de se esperar, por baixo dos panos sempre havia uma razão. Desentendida ou arredia, mas era certo que estava lá. E como tudo é medo ou dor nesse quesito, sentia-se envergonhada no aprofundamento.
Pois a cada dia sua dor aumentava e diminuia ao mesmo tempo, na mesma medida, como se maior e menor não fossem opostos. Eram dois fenômenos que juntos seguiam para uma terceira direção, advinda de uma estagnação doentia e sem chances de se revelar.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Ao ver Marina passar

Pensar simplesmente não era o forte dele. Garoto magrelo, roupas fora de moda e óculos de aros escuros lhe cobravam um perfil mais próximo do intelectual. Coisa que não era nem de longe.
Definitivamente seus olhos eram pálidos. Inesperadamente seus gestos imediatos alcançavam pouco mais do que uma alusão ao possível. Assim, Pedro constrangia a cada ranger dos dentes e permitia invasões ao seu íntimo sem afetar uma construção tanto mais profunda do que um mero reflexo.
Mas é certo que se valia de toda a vantagem da imagem grosseira de menino prodígio. Tal considerado, no máximo, poderia referir à inquietação perene, ações que lhe emprestavam um ar assim... digamos, de raras percepções.
Pedro andava chutando pedras invisíveis para fingir-se concentrado enquanto sua mente saltitava de momento em momento, demorando-se ínfimos segundos em cada desenrosco, cada qual levando a lugar algum. Ria-se de risos alheios, absorvia um pouco de fofoca diária, estendia-se no exercício do nada e cansava-se do ritmo das formigas.
Ao seu redor pessoas se desmanchavam inteiras e as manchas coloridas iam se tornando opacas, alternando os encaixes antes de se recompor.

E conhecer Marina lhe roubou longos 4 minutos de contemplação.

Tempo que até hoje busca por aí, barganhando até promessas e dando ao ar uma chance de preeenchê-lo enfim.
A ele, a forma harmônica de lábios pequenos reservou uma vida escondida sob os mistérios do desencontro. Ele não teria como saber de antemão, mas já duravam bem mais seus raciocínios ao formular equações pulsantes. Desprovido do dom da observação, ele deixara de perceber a quantas andava sua mente ao atravessar a ponte e adentrar o caminho das flores de campo trajando somente branco.

Perto daquelas doces curvas seus gestos já não eram mais tão curtos e parte de seus dedos se arriscaram por entre os cachos brisados encontrando a linha de um pensamento que nunca havia se permitido seguir.

Ao ver Marina passar, ele resolveu se casar.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O mundo de Norma Flor

Quem conheceu Norma Flor sabe que a dor pode assumir o posto de infinito. Norma Flor teve o azar de ser e estar. Algo que nunca poderia mudar, mas que hoje arrasta sua existência com a aspereza de uma mão calejada de tantas agulhas.

Sua vida era medida em metros quadrados. Cerca de 300 ou menos.

A população do seu planeta era sua clientela rabugenta e apressada. Chegavam às pilhas depositando sacolas e levantando poeira na velha mesa parcialmente devorada por cupins. Norma Flor tossia implicante. Ninguém notava. Os habitantes de Norma Flor queriam tudo pra amanhã antes das 5h. Entravam e saiam e ela nem sabia mais quem era quem. Bastava deixar tudo sempre pronto, cada um sabia o que lhe cabia melhor.

E Norma Flor baixava a cabeça diante da velha máquina de costura e pedalava como nos velhos tempos. Porque eram apenas esses que ela conhecia.
Pedalava rápido, os pés desenhados no ferro. Seu quadril era a base; seus dentes, a agulha por onde passava todo o tipo de arte. Do pano de linho amarelado à seda mais pura. Ela seguia mordendo os pontos, desenhando as formas como estradas que nunca chegam à praia.

Seu planeta tem uma cozinha velha, uma garagem cheia de tralhas, um banheiro enorme com uma banheira nostálgica, um quarto comum e um cômodo fechado. Fechado por quem? Não por Norma Flor.
Norma Flor não é o tipo de pessoa que fecha um cômodo. Mas se estiver fechado, ela nunca ousaria abrir. E agora, por mais que os anos voem, sabedoria e grandeza se fundem moldando uma nova razão: o esquecimento.
Hoje, 35 anos mais tarde, ela segue produzindo seu som de máquina velha dia e noite, deixando tudo pronto até as 5h.

Mas o povo sacudido do seu planeta não se aguenta e forma filas suspeitas, cada um mais decidido que o outro a quebrar o Esquecimento. Empurram-se, entram sorrateiros, cochicham, resmungam e esbarram nas coisas. Os habitantes de Norma Flor não querem portas fechadas.
Seus súditos fofoqueiros escancaram a porta selada pelo tempo e contemplam um espaço branco e vazio. À exceção das teias de aranha, nada há para ser compartilhado com pipoca. Todos saem aos poucos mergulhando em suas rabugices. Resta Norma Flor parada diante do vão maculado, pequenina e enrugada, franzindo a testa para segurar a coluna que já encolheu depois de tantos anos sendo máquina. Olhos verde-claros pingando lágrimas, respira rápido e profundo para não deixar o ar fugir.

Guardo-o todo comigo e torno-me você. Norma Flor deixou-se absorver pelas paredes e fechou-se.

Na mesa velha ao lado da máquina de costura, pilhas e pilhas de sacolas acumulam inquietando a poeira e nada mais.