quarta-feira, 28 de maio de 2008

Loucura de ser

Eu bem que lutei contra, mas me forçaram a estar aqui. Tentei revidar, mas fui brutalmente coagida. Exigi meu rosto, meu mapa de memórias, mas sofri severas represálias...

Aos 15 anos impuseram-me a ordem, e nada do que eu fizesse era mais do que dar voltas no mesmo lugar e chutes esgotados no vazio... até aceitar. Aos 20 forçaram-me o amor, logo eu que não via formas e cores e bolsos e necessidades. Aos 25 vi-me sem poder me ver, olhei-me no espelho sem coragem de encarar. Pois além de toda imposição, fizeram-me acreditar covarde.
Aos 35 cercaram-me de números e plásticos. Encurralaram-me na esquina suja e deram-me essa única opção. Enquadre-se para ser. E tantos anos perdidos se foram em assinaturas deprimentes, rabiscos incertos de mãos tremidas pela falta do crer. Arrastando-me para os 50 até o sossego foi-me vendido.

Hoje não sou dona do meu perfume, do meu sexo, não sou dona do meu sono. Hoje ando pela casa tocando os móveis e eles voltam-se para mim com feições monstruosas dizendo-me coisas feias, cuspindo fumaça... Os galhos das árvores no meu jardim invadem a sala pela janela e tentam arrancar minhas orelhas. As pedras da calçada se lançam contra minhas pernas e abrem feridas eternas. Não é a dor, é o sangue quase sem cor que não para de escorrer pelos meus joelhos.

Quando era pequena ainda, quando ainda era... lembro-me de ouvir dizer que a minha verdade é tudo o que sempre vou ter. Pois ando de quarto em quarto procurando-a e não lembro onde a larguei. Quanto mais penso nela, menos a tenho. Daqui a pouco nem mesmo a lembrança de tê-la existirá e aí eles poderão dizer que mais um trabalho foi concluído.

Enquanto isso, jogo tomates podres no papel de parede florido e encho a casa de porta-retratos vazios esperando o tapete esgaçar para que me mandem comprar outro. E quem sabe onde isso vai dar?

Quem sabe se vai realmente dar?

sábado, 17 de maio de 2008

Elline - 1815

Caminhando pelas calçadas de pedras soltas a impressão que se tinha era de que se tratava de uma cidade fantasma, mas alguns passos adiante pude ouvir um murmúrio crescente. Ao dobrar a esquina me deparei com a população excitada esbarrando-se e acotovelando-se na porta do salão de música da praça principal. A curiosidade foi mais forte, aproximei-me da multidão tentando identificar as conversas sussurradas em tom de fofoca.
Lá dentro, longe das sobrancelhas arqueadas e mãos agitadas, Elline dava pequenos passos por entre as cadeiras da platéia vazia. A cada troca de perna, o leve farfalhar das saias produzia um som intimidador. O teto era alto demais para a pequena garotinha ruiva. Ela erguia a cabeça e breve vertigem forçava-a a buscar apoio nos assentos de forro imperial.
O som dos passos vindos da sala ao lado ecoaram no salão. Elline voltou-se e avistou ao fundo seu acompanhante de viagem.
- Miss Elline, precisamos ir.
- Não posso deixar o anjo sozinho, caro senhor.
- Anjo?

A garotinha apontou o dedo para os vitrais mais altos da capela à direita do salão. No espaço central estava a imagem de um anjo de bochechas rosadas e olhar piedoso, logo abaixo a inscrição "Ele está convosco". Elline não entendia aquela língua, nem tampouco sabia ler, mas compreendia que aquela fala era para ela, e com seu pensamento ingênuo tentava responder-lhe o agrado. O acompanhante ponderou, consultou o relógio de bolso e decidiu-se por deixar a menina em paz por mais uns instantes.
Sozinha na capela, ela conversa com o anjo.
- Se falar comigo, meu querido anjo, posso te ouvir. Compreendo tua angústia. Também eu gostaria de estar livre para brincar no jardim, colher flores amarelas e comer frutas saborosas ao fim do dia. Mas sei que meus desejos são muito pouco para ti. Tens asas e um coração imenso, de que lhe servem se nada podes ser além de um luminoso vitral?

Pequenas lágrimas desprendiam-se de seus olhos acinzentados.
- Mas saiba, puro anjinho, estás no alto!Para mim é como estar no céu. De onde estás, podes me ver aqui tão pequena, podes ver quem entra e quem sai, podes ouvir a melodia da orquestra nos dias de festa, podes saborear uma noite quente e estrelada. Já eu aqui tão pequena neste mundo tão grande, o que posso fazer? Aqueles que lá fora me espreitam não esperam me ver, querem sim uma chance de arrancar-me um fio de cabelo, de contar aos seus que possuem o fio real nas mãos... Meu amado anjo, sei que entendes minha dor, pois da tua entendo muito bem. E quando eu crescer, a coroa se agarrará ao meu corpo como pesados grilhões. Pouco mais do que hoje serei, mas serei ouvida então. Aguarde-me neste dia, meu amigo, pois voltarei para te libertar. Oh anjo, se pudesse te livrar das grades me concederia um desejo? Dê-me a língua-mãe para que todos me escutem, dê-me braços gigantes para que a todos eu possa acolher. Dê-me asas como as tuas, para que eu possa chegar mais rápido e atravessar os mares... Dê-me o manto invisível, para que eu possa correr atrás das borboletas nas manhãs de primavera.

O acompanhante suspira e volta devagar para onde a pequena se encontra. Ela está quieta agora, de cabeça baixa, deixando os cachos vermelhos caírem pelos ombros. Facilmente ele a toma nos braços e a leva pelos fundos, fugindo da multidão.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O encontro

Mello perdeu o ar ao olhar distraídamente pelo vidro fechado do carro naquela manhã tão igual a qualquer outra. Chegou a duvidar do que via, geralmente se perdia em pensamentos e alucinava com lembranças conforme o clima, a música no carro, etc. Mas não foi o caso, a cena era tão real quanto a garoa que caía sem cessar e o caos no trânsito por ela provocado naquele momento.
Lá estava Vizzo, sim era ele, tinha certeza. O corpo encurvado, olhando para o chão, roupas pesadas, andando com um gingado particular... Era ele, totalmente diferente, mas era ele.
Mello teve ímpetos de descer do carro, correr até lá, sacudir o homem e dar um abraço apertado. Quis arrastá-lo para um bar, dividir uma cerveja e contar-lhe sua vida, saber da vida dele... coisas que há muito não fazia. Mas, ao contrário, ficou lá parado de queixo caído, tentando imaginar tudo o que poderia ter-lhe acontecido para protagonizar aquela cena.
Como a fila de carros estava parada, lá ficou Mello analisando e pensando...

O dia mal clareou e logo a garoa tratou de escurecê-lo, pintando uma paisagem triste e charmosa de inverno. Peguei meu casaco largado na cadeira e saí batendo a porta. "É interessante não ter mais malas para carregar". Saí do hotel debaixo das reclamações da proprietária, ela não me queria mais lá. "É estranho não ter mais ninguém para compartilhar".
Andei um pouco na rua sem rumo algum. Meti a mão no bolso em busca de um trocado para o café da manhã, encontrei míseras moedas. Desisti e segui andando. Esbarrei numa senhora e ela entrou em pânico, sua reação me assustou. Ela gritou e saiu correndo, agarrada à bolsa. Parei diante de uma vitrine e observei meu reflexo: quando foi que parei de pensar em mim? quando foi que me abandonei dessa forma?
A vida não é fácil quando tomamos decisões erradas, mas... afinal, há fórmula que facilite a vida? Meus atos me afastaram do mundo e hoje estou aqui sem rumo, sem objetivos q vão além da próxima refeição. Meus talentos se enterraram no asfalto, meu orgulho desceu pela privada e meu sangue... desistiu de correr pelas minhas veias, disse-me em sonho que não lhe valia mais a pena trabalhar por mim.
Foi então que me vi nestes trapos sujos e fedorentos, com a barba encobrindo o ex-sorriso, bochechas magras e pálidas, cabelo imundo colado no pescoço pelo suor de vários dias... Respirei fundo e desisti de pensar, foi pensando que vim parar aqui afinal.
Foi então que olhei para a rua e viu aquela cena, quase não acreditei. A fila de carros parada, vidros escuros fechados... mas reconheci aquele rosto, não tinha como não reconhecer. Será que ele me viu? Estava tão diferente, tão bonito e sofisticado naquele carro importado, estaria indo para o trabalho? Certo que sim.
Por um instante quis correr e bater no vidro, arrancar-lhe do carro e abraçá-lo forte. Quanta saudade daquele tempo de cumplicidade... Mas a vergonha de mim mesmo forçou meu olhar para o chão e mesmo com o coração saltando pela boca tentei passar despercebido. Pior do que ser eu é deixar meu próprio irmão ver no que me tornei.

O sinal abriu, Mello arrancou com um frio na barriga. Sabia que jamais tornaria a vê-lo.

sábado, 3 de maio de 2008

Carta póstuma

Meu amor...

Hoje pela manhã acordei e vi você ao meu lado, respirando profundo, sorrindo de leve, a barba por fazer contornando o queixo pequeno. Vi a luz do dia entrar e arrancar seu sonho. Você esfregou os olhos igual a uma criança e olhou para mim, mantendo o sorriso. Eu retornei o olhar, e você nem sequer sabia quanto ele dizia...
É bom recordar aqueles dias de outono em que caminhávamos enganchados como dois bêbados pela rua. Lembra o quanto planejávamos nesses dias?
Teve um dia, você nem mesmo percebeu: pelo caminho cruzamos um parque e uma bola veio ao seu encontro, seguido por uma menina linda de cabelos cacheados. Você entregou a bola e ficou lá agachado, vendo-a voltar correndo para os amiguinhos. Eu vi as lágrimas no canto do seu olho e nunca tive coragem de perguntar o porquê. Como eu queria saber!
Lembro também daquela nossa briga horrível, que até mesmo acordou os vizinhos, que vergonha... Você lembra o motivo? Eu não lembro, mas as ofensas que trocamos quase nos destruiu completamente. Se fosse agora, pediria desculpas... Nada valia tanto a pena discutir.

Engraçado como quando somos crianças, projetamos o nosso futuro de uma forma tão pragmática e cronologicamente perfeita. Aí a gente cresce e repara que esqueceu de uma coisa básica chamada vida. E na vida tudo acontece na base do "depende". Então seguimos escolhendo isso ou aquilo, andando ou correndo... Tem horas que eu lembro da minha mãe dizendo: "quando você crescer vai entender isso melhor". E eu crescia e nem percebia ou nem lembrava como era antes de entender. Apenas seguia compreendendo ou protelando decisões sem me dar conta do quanto havia mudado. Chegou uma hora que simplesmente pareceu-me estar pronta: eu era uma adulta. E olha que isso aconteceu muito tempo depois do que eu planejava quando criança. Aconteceu quando vi que decidia melhor, pedia menos e fazia mais, levantava mais rápido, esquecia sem dor, falava mais devagar e pensava muito, mas muito mais. E foi tão divertido me dar conta disso que cheguei quase a esquecer que ainda aprenderia mais... Pois é, eu não sabia quando seria o fim.

Foi então que encontrei você assim, sentindo-se igualmente pronto. Sem saber, fomos a escola um do outro. Um com o outro fomos crianças manhosas, fomos adolescentes briguentos, fomos adultos cansados. E de tantas dores e enganos e noites brigadas... aposto que já se perguntou, como eu tantas vezes me perguntei: quando fomos felizes?

Pois agora eu vejo. Hoje de manhã, quando o sol te despertou para mim... Hoje de manhã fomos felizes. Mas não fique triste, agora eu sei que tivemos infinitos "hojes-de-manhã".