quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O mundo de Norma Flor

Quem conheceu Norma Flor sabe que a dor pode assumir o posto de infinito. Norma Flor teve o azar de ser e estar. Algo que nunca poderia mudar, mas que hoje arrasta sua existência com a aspereza de uma mão calejada de tantas agulhas.

Sua vida era medida em metros quadrados. Cerca de 300 ou menos.

A população do seu planeta era sua clientela rabugenta e apressada. Chegavam às pilhas depositando sacolas e levantando poeira na velha mesa parcialmente devorada por cupins. Norma Flor tossia implicante. Ninguém notava. Os habitantes de Norma Flor queriam tudo pra amanhã antes das 5h. Entravam e saiam e ela nem sabia mais quem era quem. Bastava deixar tudo sempre pronto, cada um sabia o que lhe cabia melhor.

E Norma Flor baixava a cabeça diante da velha máquina de costura e pedalava como nos velhos tempos. Porque eram apenas esses que ela conhecia.
Pedalava rápido, os pés desenhados no ferro. Seu quadril era a base; seus dentes, a agulha por onde passava todo o tipo de arte. Do pano de linho amarelado à seda mais pura. Ela seguia mordendo os pontos, desenhando as formas como estradas que nunca chegam à praia.

Seu planeta tem uma cozinha velha, uma garagem cheia de tralhas, um banheiro enorme com uma banheira nostálgica, um quarto comum e um cômodo fechado. Fechado por quem? Não por Norma Flor.
Norma Flor não é o tipo de pessoa que fecha um cômodo. Mas se estiver fechado, ela nunca ousaria abrir. E agora, por mais que os anos voem, sabedoria e grandeza se fundem moldando uma nova razão: o esquecimento.
Hoje, 35 anos mais tarde, ela segue produzindo seu som de máquina velha dia e noite, deixando tudo pronto até as 5h.

Mas o povo sacudido do seu planeta não se aguenta e forma filas suspeitas, cada um mais decidido que o outro a quebrar o Esquecimento. Empurram-se, entram sorrateiros, cochicham, resmungam e esbarram nas coisas. Os habitantes de Norma Flor não querem portas fechadas.
Seus súditos fofoqueiros escancaram a porta selada pelo tempo e contemplam um espaço branco e vazio. À exceção das teias de aranha, nada há para ser compartilhado com pipoca. Todos saem aos poucos mergulhando em suas rabugices. Resta Norma Flor parada diante do vão maculado, pequenina e enrugada, franzindo a testa para segurar a coluna que já encolheu depois de tantos anos sendo máquina. Olhos verde-claros pingando lágrimas, respira rápido e profundo para não deixar o ar fugir.

Guardo-o todo comigo e torno-me você. Norma Flor deixou-se absorver pelas paredes e fechou-se.

Na mesa velha ao lado da máquina de costura, pilhas e pilhas de sacolas acumulam inquietando a poeira e nada mais.