segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A partir de agora

Difícil perceber a história cercada de sons e tumultos. Só sei dizer que vi você...

Não foi a primeira vista, muito menos a última. Mas eu estava lá e você também, num dia qualquer de verão de cidade. E na situação mais improvável de se sentir, eu não mais vi você... Eu fui você. Pelos seus poros senti arrepios estranhos, nem sempre bons, nem sempre convenientes. Olhei para todos os lados, visão turva, mas cheia de ponto certo em todo lugar. Achei graça de umas coisas estranhas, fui vista diferente. E meu perfume não era igual quando era meu...

Engraçado saber exatamente o que dizer quando tudo o que importa é estar ouvindo. Nada do que se diga tem o menor efeito sobre o que você sente, e eu sinto ainda mais estranho. Afinal, se nada disso importa não há porque conviver, não há porque ser você, não há porque tentar não ser mais eu.

É apenas o acaso vazio, sensações descritas por promessas de uma quase vivência impossível de se tomar para si como percurso viável. E que nada parta de uma linhagem psico-depressiva com compulsão por consertar pés-de-mesa. O que vai ficar é o que você sentiu... Isso e a lembrança de uma dor diminuída que confirma a nova certeza.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Chuva

E foi naquele dia em que dois homens grandes e minúsculos acostumados a se justificar por tudo e por todos se encontraram. E quando se uniram surgiu um enorme balão que foi inflando e crescendo até suas bases não suportarem mais.

E nesse dia - fazia sol - o balão estourou e o que se sucedeu foi uma chuva de respostas que caíam sem parar nos telhados e carros, batendo contra janelas dos escritórios superaquecidos e superesfriados... E caíam sobre os lixos e ruas, escoando nos esgotos entupidos de tantas sugestões... Estúpidos engodos.

E caíam sobre as cabeças atordoadas das pessoas que corriam e se sacudiam como cães, rindo e enchendo seus bolsos que já se abarrotavam de dúvidas.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Micro psicose cotidiana

Ela chegou em casa irada, cansada, arremessou a bolsa bordada, inchada, acertou na janela fechada...

E quebrou o vidro que acertou no cachorro de três patas, que furou o olho e caiu sangrando até o fim.

Agora ela descansa todo dia apoiada na soleira com vista para a mancha vermelha.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Na esquina

Cidade feia, metade já está dormindo, metade já está acordando. E eu lá, de canto, esperando o ônibus. Acendo um cigarro, chamada imediata para o velho de calças rasgadas que logo vem me pedir um fila. Fila não se nega, se dá contra a vontade, mas não se nega.
A mulher ciumenta vem tirar satisfações e eu abano com sorrisinho blasé. Quem disse que tem idade para sentir ciumes? Ele me olha, faz cara feia e tenta me confidenciar algo, eu não entendo nada e aceno que sim. Ele se contenta com isso e some na noite... atrás da mulher ciumenta... para garantir seu pedaço no cobertor.

E eu olho para a rua vazia e para o ônibus que não veio e penso se terei meu espaço no cobertor. Um vento traz o cheiro da rua e do lixo ainda exposto, minhas narinas tentam captar um resquício de ar. Engasgo e a velha ao meu lado oferece um lenço. Não obrigada.

Finalmente chega o velho solitário e barulhento. Boa noite para o motorista, com vista cansada mas ainda um sorrisinho.

Entre sacolejos vou seguindo. O som da chave em casa desperta o vizinho que inicia sua crise de tosse. Lar doce lar. Um café semi-quente e um banho entre gotas e vapor.

E o alívio traz o sono, um passo para o sonho.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Castanho-esverdeado

"Você não consegue enxergar nada além do reflexo de si mesma no seu olho se olhar direto para a superfície. É preciso um pouco de esforço para ultrapassar esta sensível camada que separa o você-do-outro e o você-profundo".

Anna caminhava calmamente nas margens do lago se equilibrando como fazia quando era menina... As sábias palavras da mãe brotavam de sua memória mais preservada. A brisa matinal do alto da serra lhe agradava, se chocava com o calor do ar que soltava dos pulmões provocando uma pequena fumaça branca. Anna preferia o frio porque a fazia sentir seu calor. O quentinho agradável do seu corpo a fazia lembrar quem era.
Há tantos anos não via aquele lago, agora de águas um pouco turvas, mas ainda com o toque esverdeado lutando para manter-se no trono.

"Você roubou o verde do lago e o guardou bem aqui nos seus olhos, eu consigo ver o lago em você onde quer que você esteja".

Anna sorria toda vez que alguma frase lhe voltava à mente, conseguia ouvir ainda aquela voz doce e firme, que transformava tudo em verdade absoluta. As palavras dela abraçavam, acariciavam, repreendiam também... mas agora até isso era suave.

Alguém surgiu por entre as árvores, pela silhueta pode reconhecer. Seu irmão agora tão alto, tão dono de si. Ele aproximou-se pela outra borda do lago e pegou uma pedra. Anna riu diante da lembrança e pôs-se a correr, não antes de evitar os respingos de água no cabelo.

Horas depois e aquela cena já estava distante, Anna retornando ao velho apartamento barulhento. Potes de comida estragada espalhavam-se pela cozinha e, no quarto, ainda a cama por fazer.

E quando poderia imaginar que sua sabedoria ia além do seu tempo? E quando poderia imaginar que o esforço para ser o seu oposto a manteria nessa dimensão sem tempo definido? E ainda... querendo voltar e recuperar o que sempre recusou.

Anna sentou-se no chão empoeirado, encarou-se no espelho e pôs-se a procurar o verde do lago.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Hoje acordei maior

Hoje acordei sem caber no colchão. O quarto não era menos que um grão de areia e quando olhei para baixo, vi o mundo como uma bola de gude.
Estiquei a mão e alcancei velhos sonhos, há tempos eles se foram em balões de gás e quase os havia perdido de vista. Mas hoje acordei maior e pude tomá-los novamente nas mãos. Com um sopro afastei a poeira e eles estavam ainda lá. Poli com a manga do casaco e logo retornou seu brilho... Pareciam ainda maiores, ou talvez meus olhos hoje tão grandes tenham visto-os de outra forma.
Voltei a olhar para o mundo, não mais que um ponto cinza-azulado abaixo do meu pé. Me agachei e encontrei-me em pedaços perdidos... E com uma pinça juntei-me tal qual um quebra-cabeça. Uma couraça minúscula que até ontem era eu.
E então veio o alívio e com meus pulmões hoje maiores aspirei o novo ar. Olhei para o lado certa de que a encontraria. E lá estava você com seu sorriso dizendo "eu sabia o tempo todo". Estendi minha mão e ao tocar a sua senti crescer um pouco mais...

E de mãos dadas fomos gigantes.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Eternidade

Ela já se sentindo meio cansada seguia arrastando
sua enorme caixa cheia de quinquilharias.
De tempos em tempos o sol engolia sua sombra
e gotas de si escorriam na face que de fora parecia sorrir,
expressão de dor tão enganadora.
Da caixa pesada e desengonçada
de vez em qdo caia um pedaço de ontem.
Mas já percorrera tantos quilômetros
arrastando aquilo,
não entendia pq nunca
diminuia o peso.
Ao contrário,
cada vez que parava para descansar,
o peso aumentava.

Só entendia que seguiria arrastando aquilo por dias e dias e dias...
e que a vida era muito longa.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Loucura de ser

Eu bem que lutei contra, mas me forçaram a estar aqui. Tentei revidar, mas fui brutalmente coagida. Exigi meu rosto, meu mapa de memórias, mas sofri severas represálias...

Aos 15 anos impuseram-me a ordem, e nada do que eu fizesse era mais do que dar voltas no mesmo lugar e chutes esgotados no vazio... até aceitar. Aos 20 forçaram-me o amor, logo eu que não via formas e cores e bolsos e necessidades. Aos 25 vi-me sem poder me ver, olhei-me no espelho sem coragem de encarar. Pois além de toda imposição, fizeram-me acreditar covarde.
Aos 35 cercaram-me de números e plásticos. Encurralaram-me na esquina suja e deram-me essa única opção. Enquadre-se para ser. E tantos anos perdidos se foram em assinaturas deprimentes, rabiscos incertos de mãos tremidas pela falta do crer. Arrastando-me para os 50 até o sossego foi-me vendido.

Hoje não sou dona do meu perfume, do meu sexo, não sou dona do meu sono. Hoje ando pela casa tocando os móveis e eles voltam-se para mim com feições monstruosas dizendo-me coisas feias, cuspindo fumaça... Os galhos das árvores no meu jardim invadem a sala pela janela e tentam arrancar minhas orelhas. As pedras da calçada se lançam contra minhas pernas e abrem feridas eternas. Não é a dor, é o sangue quase sem cor que não para de escorrer pelos meus joelhos.

Quando era pequena ainda, quando ainda era... lembro-me de ouvir dizer que a minha verdade é tudo o que sempre vou ter. Pois ando de quarto em quarto procurando-a e não lembro onde a larguei. Quanto mais penso nela, menos a tenho. Daqui a pouco nem mesmo a lembrança de tê-la existirá e aí eles poderão dizer que mais um trabalho foi concluído.

Enquanto isso, jogo tomates podres no papel de parede florido e encho a casa de porta-retratos vazios esperando o tapete esgaçar para que me mandem comprar outro. E quem sabe onde isso vai dar?

Quem sabe se vai realmente dar?

sábado, 17 de maio de 2008

Elline - 1815

Caminhando pelas calçadas de pedras soltas a impressão que se tinha era de que se tratava de uma cidade fantasma, mas alguns passos adiante pude ouvir um murmúrio crescente. Ao dobrar a esquina me deparei com a população excitada esbarrando-se e acotovelando-se na porta do salão de música da praça principal. A curiosidade foi mais forte, aproximei-me da multidão tentando identificar as conversas sussurradas em tom de fofoca.
Lá dentro, longe das sobrancelhas arqueadas e mãos agitadas, Elline dava pequenos passos por entre as cadeiras da platéia vazia. A cada troca de perna, o leve farfalhar das saias produzia um som intimidador. O teto era alto demais para a pequena garotinha ruiva. Ela erguia a cabeça e breve vertigem forçava-a a buscar apoio nos assentos de forro imperial.
O som dos passos vindos da sala ao lado ecoaram no salão. Elline voltou-se e avistou ao fundo seu acompanhante de viagem.
- Miss Elline, precisamos ir.
- Não posso deixar o anjo sozinho, caro senhor.
- Anjo?

A garotinha apontou o dedo para os vitrais mais altos da capela à direita do salão. No espaço central estava a imagem de um anjo de bochechas rosadas e olhar piedoso, logo abaixo a inscrição "Ele está convosco". Elline não entendia aquela língua, nem tampouco sabia ler, mas compreendia que aquela fala era para ela, e com seu pensamento ingênuo tentava responder-lhe o agrado. O acompanhante ponderou, consultou o relógio de bolso e decidiu-se por deixar a menina em paz por mais uns instantes.
Sozinha na capela, ela conversa com o anjo.
- Se falar comigo, meu querido anjo, posso te ouvir. Compreendo tua angústia. Também eu gostaria de estar livre para brincar no jardim, colher flores amarelas e comer frutas saborosas ao fim do dia. Mas sei que meus desejos são muito pouco para ti. Tens asas e um coração imenso, de que lhe servem se nada podes ser além de um luminoso vitral?

Pequenas lágrimas desprendiam-se de seus olhos acinzentados.
- Mas saiba, puro anjinho, estás no alto!Para mim é como estar no céu. De onde estás, podes me ver aqui tão pequena, podes ver quem entra e quem sai, podes ouvir a melodia da orquestra nos dias de festa, podes saborear uma noite quente e estrelada. Já eu aqui tão pequena neste mundo tão grande, o que posso fazer? Aqueles que lá fora me espreitam não esperam me ver, querem sim uma chance de arrancar-me um fio de cabelo, de contar aos seus que possuem o fio real nas mãos... Meu amado anjo, sei que entendes minha dor, pois da tua entendo muito bem. E quando eu crescer, a coroa se agarrará ao meu corpo como pesados grilhões. Pouco mais do que hoje serei, mas serei ouvida então. Aguarde-me neste dia, meu amigo, pois voltarei para te libertar. Oh anjo, se pudesse te livrar das grades me concederia um desejo? Dê-me a língua-mãe para que todos me escutem, dê-me braços gigantes para que a todos eu possa acolher. Dê-me asas como as tuas, para que eu possa chegar mais rápido e atravessar os mares... Dê-me o manto invisível, para que eu possa correr atrás das borboletas nas manhãs de primavera.

O acompanhante suspira e volta devagar para onde a pequena se encontra. Ela está quieta agora, de cabeça baixa, deixando os cachos vermelhos caírem pelos ombros. Facilmente ele a toma nos braços e a leva pelos fundos, fugindo da multidão.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O encontro

Mello perdeu o ar ao olhar distraídamente pelo vidro fechado do carro naquela manhã tão igual a qualquer outra. Chegou a duvidar do que via, geralmente se perdia em pensamentos e alucinava com lembranças conforme o clima, a música no carro, etc. Mas não foi o caso, a cena era tão real quanto a garoa que caía sem cessar e o caos no trânsito por ela provocado naquele momento.
Lá estava Vizzo, sim era ele, tinha certeza. O corpo encurvado, olhando para o chão, roupas pesadas, andando com um gingado particular... Era ele, totalmente diferente, mas era ele.
Mello teve ímpetos de descer do carro, correr até lá, sacudir o homem e dar um abraço apertado. Quis arrastá-lo para um bar, dividir uma cerveja e contar-lhe sua vida, saber da vida dele... coisas que há muito não fazia. Mas, ao contrário, ficou lá parado de queixo caído, tentando imaginar tudo o que poderia ter-lhe acontecido para protagonizar aquela cena.
Como a fila de carros estava parada, lá ficou Mello analisando e pensando...

O dia mal clareou e logo a garoa tratou de escurecê-lo, pintando uma paisagem triste e charmosa de inverno. Peguei meu casaco largado na cadeira e saí batendo a porta. "É interessante não ter mais malas para carregar". Saí do hotel debaixo das reclamações da proprietária, ela não me queria mais lá. "É estranho não ter mais ninguém para compartilhar".
Andei um pouco na rua sem rumo algum. Meti a mão no bolso em busca de um trocado para o café da manhã, encontrei míseras moedas. Desisti e segui andando. Esbarrei numa senhora e ela entrou em pânico, sua reação me assustou. Ela gritou e saiu correndo, agarrada à bolsa. Parei diante de uma vitrine e observei meu reflexo: quando foi que parei de pensar em mim? quando foi que me abandonei dessa forma?
A vida não é fácil quando tomamos decisões erradas, mas... afinal, há fórmula que facilite a vida? Meus atos me afastaram do mundo e hoje estou aqui sem rumo, sem objetivos q vão além da próxima refeição. Meus talentos se enterraram no asfalto, meu orgulho desceu pela privada e meu sangue... desistiu de correr pelas minhas veias, disse-me em sonho que não lhe valia mais a pena trabalhar por mim.
Foi então que me vi nestes trapos sujos e fedorentos, com a barba encobrindo o ex-sorriso, bochechas magras e pálidas, cabelo imundo colado no pescoço pelo suor de vários dias... Respirei fundo e desisti de pensar, foi pensando que vim parar aqui afinal.
Foi então que olhei para a rua e viu aquela cena, quase não acreditei. A fila de carros parada, vidros escuros fechados... mas reconheci aquele rosto, não tinha como não reconhecer. Será que ele me viu? Estava tão diferente, tão bonito e sofisticado naquele carro importado, estaria indo para o trabalho? Certo que sim.
Por um instante quis correr e bater no vidro, arrancar-lhe do carro e abraçá-lo forte. Quanta saudade daquele tempo de cumplicidade... Mas a vergonha de mim mesmo forçou meu olhar para o chão e mesmo com o coração saltando pela boca tentei passar despercebido. Pior do que ser eu é deixar meu próprio irmão ver no que me tornei.

O sinal abriu, Mello arrancou com um frio na barriga. Sabia que jamais tornaria a vê-lo.

sábado, 3 de maio de 2008

Carta póstuma

Meu amor...

Hoje pela manhã acordei e vi você ao meu lado, respirando profundo, sorrindo de leve, a barba por fazer contornando o queixo pequeno. Vi a luz do dia entrar e arrancar seu sonho. Você esfregou os olhos igual a uma criança e olhou para mim, mantendo o sorriso. Eu retornei o olhar, e você nem sequer sabia quanto ele dizia...
É bom recordar aqueles dias de outono em que caminhávamos enganchados como dois bêbados pela rua. Lembra o quanto planejávamos nesses dias?
Teve um dia, você nem mesmo percebeu: pelo caminho cruzamos um parque e uma bola veio ao seu encontro, seguido por uma menina linda de cabelos cacheados. Você entregou a bola e ficou lá agachado, vendo-a voltar correndo para os amiguinhos. Eu vi as lágrimas no canto do seu olho e nunca tive coragem de perguntar o porquê. Como eu queria saber!
Lembro também daquela nossa briga horrível, que até mesmo acordou os vizinhos, que vergonha... Você lembra o motivo? Eu não lembro, mas as ofensas que trocamos quase nos destruiu completamente. Se fosse agora, pediria desculpas... Nada valia tanto a pena discutir.

Engraçado como quando somos crianças, projetamos o nosso futuro de uma forma tão pragmática e cronologicamente perfeita. Aí a gente cresce e repara que esqueceu de uma coisa básica chamada vida. E na vida tudo acontece na base do "depende". Então seguimos escolhendo isso ou aquilo, andando ou correndo... Tem horas que eu lembro da minha mãe dizendo: "quando você crescer vai entender isso melhor". E eu crescia e nem percebia ou nem lembrava como era antes de entender. Apenas seguia compreendendo ou protelando decisões sem me dar conta do quanto havia mudado. Chegou uma hora que simplesmente pareceu-me estar pronta: eu era uma adulta. E olha que isso aconteceu muito tempo depois do que eu planejava quando criança. Aconteceu quando vi que decidia melhor, pedia menos e fazia mais, levantava mais rápido, esquecia sem dor, falava mais devagar e pensava muito, mas muito mais. E foi tão divertido me dar conta disso que cheguei quase a esquecer que ainda aprenderia mais... Pois é, eu não sabia quando seria o fim.

Foi então que encontrei você assim, sentindo-se igualmente pronto. Sem saber, fomos a escola um do outro. Um com o outro fomos crianças manhosas, fomos adolescentes briguentos, fomos adultos cansados. E de tantas dores e enganos e noites brigadas... aposto que já se perguntou, como eu tantas vezes me perguntei: quando fomos felizes?

Pois agora eu vejo. Hoje de manhã, quando o sol te despertou para mim... Hoje de manhã fomos felizes. Mas não fique triste, agora eu sei que tivemos infinitos "hojes-de-manhã".

quarta-feira, 12 de março de 2008

Orvalho

Um dia que amanhece um tanto frio, o sol parece não ter despertado ainda para sua função e, apesar da luz, brilha lá no alto fresquinho. Cara de verão das montanhas.
Só agora de manhã viram que ela chorara mais uma vez. À noite todos se recolhem às suas vidas, não ouvem os gemidos tímidos. Mas a bela rosa está lá, úmida e cabisbaixa, exausta em um leve cochilo que todos temem interromper.
Sua pequena parte envelhecida caída no chão, nas folhas algumas gotas relutantes em cair. Linda rosa que se acaba em dias... Fora injusta a distribuição das tarefas, fora injusto dar tanta beleza para tão pouco tempo. É doloroso não ser amado, mas é irreconhecível a dor de ser e perder tão cedo. Ver-se esvair deixando no ar apenas o perfume daquilo que já foi.
E logo a brisa acorda para mais um dia de trabalho, varrendo os estragos do vento boêmio, destruindo as pistas e levando consigo para onde não se sabe. Rosa acorda já sem lembrança. Olha o céu azul tão lindo e se enche de charme. Uma parte sua a menos e a cor viçosa das pétalas escondidas pode enfim tomar frente... e ela ainda é a mais bela.
Esquecimento ou fingimento, somente ao se recolher no fim da noite é que as lágrimas tornarão a cair pela perda de mais de si. Até lá, há um dia inteiro de veludo e perfume suave.
E a linda rosa espera a noite para chorar.

terça-feira, 4 de março de 2008

Sendo-me

É ela que sabe todas as minhas senhas, todos os códigos, tem a chave da minha casa e do meu cofre. Ela sabe a cor da minha alma e o peso das minhas pálpebras. Conhece o curso do meu rio de lágrimas... a seqüência das minhas palavras. Sabe quantas vezes respiro e sabe o que me faz parar de respirar. Conhece meu pulso, desenrola o emaranhado de veias, é ela que sabe quando o sangue circula mais rápido.
Ela entende o sopro do meu pensamento matinal, sabe o que me tira o sono. Conhece meus livros, meu paladar... sabe o que é música e o que me faz gritar. Ela lê as linhas da minha mão, sabe quando minhas unhas crescem, quando meu olho muda de cor. Conhece meus segredos de beleza, meus mistérios de feiura, escuta o meu silêncio, controla o vento que levanta meu vestido. Sente o cheiro da minha dor e sabe o peso dos meus ombros. Ela percorre a linha curva da minha coluna, sabe a resposta antes da pergunta. Ela mata os monstros debaixo da minha cama, toca minha canção de ninar... ela conversa com a minha preguiça.
Ela ouve meu estômago roncar, livra meus poros da poluição, lê meu riso ainda sorriso. Ela conhece meu ontem e escuta meus trovões. Ela salta entre minhas idéias, conhece meus lençóis.

Ela me é muito mais que eu. E se não fosse, quem seria eu afinal...

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Primeiro amor

Mil idéias agitavam a mente do pequeno garotinho de cabelos escuros e olhos puxados iguais aos do pai. Mil movimentos a lhe provocar sorrisos, mil possibilidades de uma nova noite esgotada. Domingo ele pulava da cama com o ânimo que não lhe faria sentido anos depois. Expulsava as cobertas num chute, saltava em frente à janela e escancarava-a deixando o sol gritar na sua pele branquinha. Na casa de dois cômodos, todos eram movidos à luz solar e igualmente saltavam da cama sem o mesmo ânimo de antigamente.
Dia de feira. Parque de diversões para ele, comida no prato para todos. E lá seguia correndo com suas pernas de formiga para alcançar a pressa mau-humorada da mãe. No local, o irmão-grandão já ajeitava as barracas gritando palavrões e trocando piadas que ele não entenderia tão cedo. Logo a função começava e o mar de calçados pisados seguia em procissão desesperada, guiada pelos cotovelos e cabelos colados no pescoço.
O garotinho pulava atrás das bananas e tentava imitar as rimas. Mas o momento esperado chegava... Quando sua sombra esticada se aproximava do pé, lá ia ele correndo para a barraca de Josias, o cortador de carne. Agachava-se como um animal à espreita e ria baixinho de si mesmo.
Lá ao longe ele podia ver chegando... A multidão agitada se afastava e ele sentia-se capaz de atravessar muros com seus olhos. Sapatos rosados, pintados em flores, acima do chão. Alternavam-se em dança suave e não pediam licença. Eram cortejados, sabiam eles... o que lhes davam mais graça.
O garoto tinha aquele brilho no olhar que mais tarde desapareceria. E enrubecia-se todo ao olhar seus chinelinhos sujos tão indignos.
À noite, ao deitar, prometia em silêncio que um dia compraria sapatos bonitos de gente grande.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Dois pares

Quando os pares se cruzam, o mundo fica estranho. Eram dois: um par de um azul intenso, de profundidade oceânica; o outro negro e malicioso, sempre dizendo mais.
Lá fora, vendavais carregados de folhas e poeira cinzenta circulavam em dança agitada... o prenúncio da desordem. Mas não importava. Importavam os raios, deles o par negro fugia, assustava-se sem reflexos, umidecia-se antes de tornar a fixar. Já o azul, destemido, continuava firme, sem interromper o trajeto imaginário, a linha que não se curvava.
Os negros diziam, com seu leve tom sedutor, que não sabiam mais... Os azuis rebatiam depressa, tentando destruir a incerteza, sem molejo para torná-la aliada.
Guerra divertida, a dos pares, que por inexplicável laço não conseguiam desviar. Revidavam-se em jogos eternos, sem nunca trair a si próprios. Afinal a traição era relativa, os negros valiam-se disso com toda propriedade. Enquanto que os azuis, não ingênuos, pescavam falseadas breves e daí tiravam seu poder.
E os ventos em revolta circulavam cada vez mais rápido, medindo forças, apertando o cerco. Ventos que sonham redemoinhos, que almejam tufões furiosos... nem assim os pares se afastam. Acabam-se as forças ao seu redor, a majestosa energia inabalável permanece em seu trono provando não haver possibilidade de derrota...
Não nesta vida, não quando os pares se cruzam.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Noite de festa

Foi quando todos dormiram e os motores do galpão ao lado foram desligados... foi quando o cachorro cessou seu latido e as madeiras do chão pararam de estalar... quando a pilha do relógio da parede acabou e quando os carros pararam de passar... Quando só o som da sua própria respiração ecoava na casa e parecia que poderia ser ouvido além do Atlântico.
Mas não era silêncio o que ela tinha ali, eram vozes, muitas vozes, acompanhadas de ruídos escandalosos e risadas altas debochadas e sarcásticas. Com os olhos colados no teto ela tentou definir quem dizia o quê e assim separar os diálogos em arquivos diferentes, talvez alternando para compreender o princípio daquilo... ou até mesmo para descobrir se teria fim.
E assim o sono não se encorajava, passava o tempo e as pupilas, acostumadas à escuridão da noite, brilhavam enormes como olhos de gato. Prendeu um espirro e ouviu um "saúde" de uma voz jovial e dinâmica. Sorriu e agradeceu com a cabeça. Aos poucos foi se enturmando na festa sonora, apurando as conversas e quase ousando se intrometer.

Pontualmente às 6h da manhã, no apartamento empoeirado do 4º andar, a luz atravessa a sala de estar para avisar que a vida recomeça lá fora. As despedidas acontecem todas ao mesmo tempo e, de repente, tudo está vazio mais uma vez. Sozinha na cama estreita com seus velhos lençóis ela fecha os olhos e adormece.
Na sua mente, copos vazios e restos de comida pelo chão aguardam a próxima noite de festa.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Tumor

Hoje acordei com aquele gosto na boca de de vez quem quando... esse gosto me lembra de um velho conhecido hipocondríaco que dizia "sentir gosto e cheiro estranho é coisa de câncer". Pode ser sim. Um velho tumor que volta e meia dá uma crescidinha, monopoliza umas áreas do cérebro e resgata sabores e perfumes.
E talvez nesse dia cinzento típico dos poetas deprimidos eu tenha pensado demais, voltado no tempo, ansiando me jogar no depois só pra ver o que vai acontecer e depois retornar tranquila e tomar decisões certas.
A sensação é igual a de sempre e a de todo mundo. De quando eu me sentava na platéia e assistia ballet soluçando de tanta frustração. De quando, só de lembrar daquela discussão que virou barraco que virou doença que virou rancor eterno sentia o peito apertar até quase sumir. E isso doía de verdade. De quando, quase ontem, ouvi o baque das malas no chão porque não tinha mais nada a ser ouvido. De quando vi aquela carta ser lembrada depois de quase 10 anos e senti o peso da responsabilidade de ser irresponsável. De quando tive que ir embora e chorei um mês de saudade e um mês de alegria.
Vontade doida de pedir desculpas mil vezes... e talvez já tenha pedido. Vontade de ser aquilo que ela sonhou quando tinha cabelos longos e corpinho de miss e namorava o cara magrinho que andava de fusca. Vontade de ser cor-de-rosa como ele sempre quis. Vontade de concluir aquele livro só pra hoje ler e rir. Vontade do cheirinho de gel e do batom de marca boa que marcava na bochecha. E da marca de dedo na máquina fotográfica. Vontade do chinelo que respira e de foto no caminhão azul. Vontade de café na estrada. Vontade de ver aquela vaca pastando na cidade.
Vontade do susto atrás da porta e da história da bruxa repetida até esgotar os finais.

Mas a vontade vai com a chuva... e eu vou ficar aqui.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Quando cai a noite

Pouco depois das oito da noite ela gostava de sentar no sofá e se aconchegar, esperando por sua novela. Gostava de tomar seu café devagar. Gostava de fazer cafuné no seu amor.
Um pouco mais tarde dessa vez, ela sentou no seu lugar habitual, chamou Cesinha e pôs-se a passar os dedos entre os anéis do seu cabelo fino e levemente dourado. Desta vez mais cansada, com um pouco de dificuldade devido ao ferimento enfaixado da mão direita.
Fazia um esforço, mas era recompensada. Seu prêmio era aquele sorriso de canto de boca que ele dava cada vez que ela lhe agradava desse jeito. Seu prêmio era os olhos castanhos semi-cerrados, o calor do corpo dele repousando no seu colo. Nesse momento era feliz.
Enquanto agradava seu amor, olhava ao redor. Os quadros nas paredes acolhedoras, o perfume das flores na janela, o tapete fofinho sob seus pés maltratados... Ele lhe dera uma vida de verdade. Lembrar da sua vida três anos atrás era até doloroso. Gritos, choro de criança, briga de vizinhos, panelas amassadas com sobras de carne dura... e o cheiro... lembrar daquele cheiro fazia o odor voltar-lhe às narinas. Aquele lugar fedia a esgoto, bicho morto, comida estragada.
Mas aí surgiu seu anjo, lhe arrancando da pele a cor imunda das ruas barrentas, tirando as vergonhas encrustadas nos nós do seu cabelo maltratado, escovando a dor da ignorância colada às suas costas sardentas, lavando a sordidez agarrada aos dentes amarelados.
Fez-se ela, mulher cuidada, sorridente e com brilho nos olhos. Que anda pela casa balançando os quadris contentes com a vassoura na mão, cantarolando músicas que só ela conhecia.
Os dias difíceis são passageiros agora. As dores são merecidas. Castigo é necessário de vez em quando, ela bem sabe. Mas as feridas agora saram rapidinho e ela nem liga.
Só lhe interessa o cair da noite para assistir sua novela, tomar seu café devagar e fazer cafuné no seu amor.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Gaiola vazia

Me disseram que a febre é só reflexo, é só parágrafo... E eu que perdi tanto tempo dizendo e achando ser explicação, fundamento, conclusão sem prévia e sem propósito. As têmporas doem um pouco mais a cada pulsação e gritar já é proibido, ato devasso, obsceno e inadequadamente enquadrado em desencaixes das moléculas no ar. E mesmo que eu tentasse, ao simples lançar da idéia, ela não espera e em perplexa forma foge de mim em vôo rápido e rasante o que para ela é apenas suave passeio.
Até mesmo a possibilidade de chamá-la já é vergonhosa, mal ouso tentar. É inútil se convencer de que fui quem pulou primeiro se ainda estou lá, em débil aceno à nuvem baixa, sonhando e buscando ainda ver a silhueta desenhada nos meus olhos em toda manhã quente e sonora.
Não... gritar não... É pecado... macula o canto incompreensível da queda.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

À prova

Ele arriscou umas palavras, mas não sabia falar inglês. Tampouco sabia falar. Ao encarar aquele rosto pequeno ele engolia seco, agitava as mãos em pedido cego de socorro, enquanto seus olhos explodiam em aflições e angústias.

Para que palavras com tanto olhar?

A garotinha sorria e em cada sorriso um tempo que já foi. Cada som infantil uma marca do passado que ele não saberia reconhecer. Poderia usar discursos, poderia apoiar-se em grandes nomes. Sim, o presente é tudo o que temos. Diga isso cem vezes sem gaguejar e tente ser dono dessa verdade. Fora das duvidosas palavras do mundo, ele apenas sabia que sim, passado é real. Passado dói, transforma e não se altera.
Passeio no parque, coca-cola, picolé e aqueles bichinhos de pelúcia que colam no vidro... subterfúgios nulos, retirados como modelo de um filme com final feliz e que nunca se aplica.

E ele sabe. Mas ela não. Ela só sorri e estende os dedinhos minúsculos que mais cedo foram rabiscados de caneta colorida e agora apresentam riscos gastos e pouco visíveis. E ele continua engasgado sabendo que aquele desenho vivo ele jamais verá.

Porque é assim que é

Livres para ver, sentir, chegar, fugir, provar...

Nada que se exija é digno de ser. Então que seja menos imperativa a voz, menos rijo o movimento. Negar as regras e se render à revolta banal, negar os padrões e descobrir onde mora a essência... e o que não é válido é apenas o que não é.

Porque é assim que é. Facultativo, sem portas e relógios. Apenas o velho e bom sorriso de boas vindas.