segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Na esquina

Cidade feia, metade já está dormindo, metade já está acordando. E eu lá, de canto, esperando o ônibus. Acendo um cigarro, chamada imediata para o velho de calças rasgadas que logo vem me pedir um fila. Fila não se nega, se dá contra a vontade, mas não se nega.
A mulher ciumenta vem tirar satisfações e eu abano com sorrisinho blasé. Quem disse que tem idade para sentir ciumes? Ele me olha, faz cara feia e tenta me confidenciar algo, eu não entendo nada e aceno que sim. Ele se contenta com isso e some na noite... atrás da mulher ciumenta... para garantir seu pedaço no cobertor.

E eu olho para a rua vazia e para o ônibus que não veio e penso se terei meu espaço no cobertor. Um vento traz o cheiro da rua e do lixo ainda exposto, minhas narinas tentam captar um resquício de ar. Engasgo e a velha ao meu lado oferece um lenço. Não obrigada.

Finalmente chega o velho solitário e barulhento. Boa noite para o motorista, com vista cansada mas ainda um sorrisinho.

Entre sacolejos vou seguindo. O som da chave em casa desperta o vizinho que inicia sua crise de tosse. Lar doce lar. Um café semi-quente e um banho entre gotas e vapor.

E o alívio traz o sono, um passo para o sonho.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Castanho-esverdeado

"Você não consegue enxergar nada além do reflexo de si mesma no seu olho se olhar direto para a superfície. É preciso um pouco de esforço para ultrapassar esta sensível camada que separa o você-do-outro e o você-profundo".

Anna caminhava calmamente nas margens do lago se equilibrando como fazia quando era menina... As sábias palavras da mãe brotavam de sua memória mais preservada. A brisa matinal do alto da serra lhe agradava, se chocava com o calor do ar que soltava dos pulmões provocando uma pequena fumaça branca. Anna preferia o frio porque a fazia sentir seu calor. O quentinho agradável do seu corpo a fazia lembrar quem era.
Há tantos anos não via aquele lago, agora de águas um pouco turvas, mas ainda com o toque esverdeado lutando para manter-se no trono.

"Você roubou o verde do lago e o guardou bem aqui nos seus olhos, eu consigo ver o lago em você onde quer que você esteja".

Anna sorria toda vez que alguma frase lhe voltava à mente, conseguia ouvir ainda aquela voz doce e firme, que transformava tudo em verdade absoluta. As palavras dela abraçavam, acariciavam, repreendiam também... mas agora até isso era suave.

Alguém surgiu por entre as árvores, pela silhueta pode reconhecer. Seu irmão agora tão alto, tão dono de si. Ele aproximou-se pela outra borda do lago e pegou uma pedra. Anna riu diante da lembrança e pôs-se a correr, não antes de evitar os respingos de água no cabelo.

Horas depois e aquela cena já estava distante, Anna retornando ao velho apartamento barulhento. Potes de comida estragada espalhavam-se pela cozinha e, no quarto, ainda a cama por fazer.

E quando poderia imaginar que sua sabedoria ia além do seu tempo? E quando poderia imaginar que o esforço para ser o seu oposto a manteria nessa dimensão sem tempo definido? E ainda... querendo voltar e recuperar o que sempre recusou.

Anna sentou-se no chão empoeirado, encarou-se no espelho e pôs-se a procurar o verde do lago.