Fitando-me diante do espelho eu percebia a quantas andava aquele corpo largado pelo tempo. Afinal, já se iam tantos anos desde que parei de contar os centímetros do quadril. Arriscava-me a mergulhar nas justificativas infames dos perdidos dias de infância, quando o que menos pesava era a vaidade e, só por isso, era-se mais feliz. Não sabia bem ao certo se isso servia como explicação, mas no momento contagiava os lábios tal lembrança e aos poucos eu esboçava aquele sorriso que não tinha tempo.
Quando pequena, as marcas não foram duras, mas poderia perfeitamente esconder-me nas rachaduras dos anos de trovoadas. Tinha meus cinco ou seis anos, figura magrela e descompromissada metida em camisolões de linho. E não há como voltar no túnel sem referir a memória aos grandes e duros bigodes do meu pai.
Naquele dia tumultuado, eu escapara dos olhos esticados da mãe para invadir o quarto proibido. Todos estavam na sala conversando alto, os homens bebendo sem medida. Empurrei a porta pesada e respirei uma atmosfera sólida. Tudo ali estava tão morto quanto ele. Olhei em volta e os quadros velhos nas paredes não ligavam para a assimetria, contrapondo com as dezenas de quinquilharias perfeitamente equilibradas sobre a penteadeira, o armário, as prateleiras e a cabeceira da cama. Sobre os lençóis grossos da fazenda estava o corpo esticado desenhando uma silhueta montanhosa, a barriga fazendo sombra com a luz amarela do criado mudo. De resto, pouco mais consigo lembrar além dos dedos engalfinhados sobre o peito inerte. Seu bigode estava lá também, compondo o visual severo, desta vez sem a testa franzida costumeira. Apenas a representação bruta de um escovão sobre a boca calada.
Subindo na ponta dos pés, uma força que não busquei controlar fez com que eu estendesse a mão em direção aos pêlos que jaziam no rosto do meu pai. Coisa que nunca fizera em vida, apesar do coração estar aos pulos eu trazia certo divertimento pelo feito quando senti o bigode espetar meu dedo. No susto, tratei de sair dali em um pulo só. Já do lado de fora, constatando que ninguém dera pela minha investida, postei-me no corredor. Os pés no chão encurvados um contra o outro. As mãos enroladas nas costas, a esquerda guardando a direita.
O estranhamento do dia não tardara encontrar seu sentido, quando pela semana afora dei pelo lugar sempre vazio na ponta da mesa às refeições. A mãe sustentando bolsas d’água sob os olhos fundos, a Naná trazendo o feijão sem a gritaria de antigamente. Sim, porque quando temos pouca vida, antigamente pode ser ontem e o futuro tem a dimensão do infinito.
Não suspeitem da minha dificuldade de compreender as coisas à minha volta. Eu pouco me dedicava a pensar, é bem verdade. Mas entender o real significado da morte a mim era descabido. Assim, a inocência se perdeu com os fios compridos desprendidos da minha nuca enquanto Naná me penteava para o colégio.
- Meu pai morreu né?
Com olhar doce, a mulher cujas mãos me colocaram no mundo, conforme fui saber mais tarde, já falava se preparando para o momento: - sim, ele morreu.
- Mas ele morreu a semana inteira?
Um instante e toda simplicidade de Naná captou meu raciocínio fraco e suspirou: - sim, todos os dias e todas as noites.
Eu ouvi profundo.
- E ele vai parar de morrer algum dia ou devo me acostumar com isso?
De resposta, ganhei um abraço e me livrei da escola por uma tarde inteirinha.
Agora, diante do espelho, ocorreu-me: me acostumei enfim.
"... gosto de muitas coisas ao mesmo tempo, e me confundo inteiro e fico todo enrolado correndo de um destino falido para outro, até desistir. Assim é a noite, é isso o que ela faz com você; eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser minha própria confusão". (Jack Kerouac, On the road)
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
Fratura exposta
Não era a primeira noite que acordava de sobressalto. Um beliscão nos ossos internos do ouvido confundia os sentidos e por um segundo não sabia ao certo se estivera mesmo dormindo até então. Na meia luz observava aqueles contornos de borboleta. Deitada de costas, ela ressonava mergulhada nos seus habituais sonhos lúdicos. O desenho dos seus ombros provocava-lhe um fascínio quase hipnótico. Eram como asas, em sua irresistível fragilidade que quase implorava o toque. E mesmo sabendo que poderia se romper tão facilmente, deixava-se afagar sem qualquer pudor.
Ele acordava cedo demais. Vestia-se sem muito cuidado e saía em silêncio para procurar emprego, muitas vezes encontrando outras coisas pelo caminho. E só quando o sol desistia e punha-se a deitar que ele tomava o rumo de casa. Escondido sob o hálito de carvalho, um olhar de cansaço forçado, assim a desculpa diária estava garantida.
Mal cruzava o portão e seu corpo era envolvido por aqueles braços finos e brancos. O perfume de alfazema pingava em sua camisa surrada ao ganhar aqueles lábios. Todos os dias como se fosse o primeiro.
Ele esboçava um sorriso: uma fratura exposta. E ela aceitava com duas doses extras de açúcar. Ouvia-lhe todas as histórias, todas as recusas de cada dia. Caprichava na camisola, afagava-lhe os cabelos, arriscava, vez ou outra, um pedido gentil. Ela, que escolhera a vida da doação, que trabalhava perto de casa para levar o pequeno Ernesto para a escola, que acompanhava o crescimento das colméias, que lhe esperava com café e chinelos de pano. Ela, que era a razão de suas vergonhas, dormia tranquila e plena.
Então, a cada noite em claro, ele pensava que a amava mais pela expectativa de aprender a amar do que pela compreensão absoluta do sentido. E ele, que só sabia amar com culpa, tirava-lhe os cabelos do rosto e sussurrava-lhe um pedido de desculpa quando tinha certeza de que não seria ouvido. Quem sabe sua mente relaxada capture o momento e ele passe a frequentar seus sonhos?
Ele acordava cedo demais. Vestia-se sem muito cuidado e saía em silêncio para procurar emprego, muitas vezes encontrando outras coisas pelo caminho. E só quando o sol desistia e punha-se a deitar que ele tomava o rumo de casa. Escondido sob o hálito de carvalho, um olhar de cansaço forçado, assim a desculpa diária estava garantida.
Mal cruzava o portão e seu corpo era envolvido por aqueles braços finos e brancos. O perfume de alfazema pingava em sua camisa surrada ao ganhar aqueles lábios. Todos os dias como se fosse o primeiro.
Ele esboçava um sorriso: uma fratura exposta. E ela aceitava com duas doses extras de açúcar. Ouvia-lhe todas as histórias, todas as recusas de cada dia. Caprichava na camisola, afagava-lhe os cabelos, arriscava, vez ou outra, um pedido gentil. Ela, que escolhera a vida da doação, que trabalhava perto de casa para levar o pequeno Ernesto para a escola, que acompanhava o crescimento das colméias, que lhe esperava com café e chinelos de pano. Ela, que era a razão de suas vergonhas, dormia tranquila e plena.
Então, a cada noite em claro, ele pensava que a amava mais pela expectativa de aprender a amar do que pela compreensão absoluta do sentido. E ele, que só sabia amar com culpa, tirava-lhe os cabelos do rosto e sussurrava-lhe um pedido de desculpa quando tinha certeza de que não seria ouvido. Quem sabe sua mente relaxada capture o momento e ele passe a frequentar seus sonhos?
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
Ela fala com as flores
Apesar de o vento sul ter acordado naquela manhã com tanta vontade de ser, para um dia que começava assim meio cinzento era até estranho que ela estivesse tão feliz. Mas a paisagem que se formava diante da sua janela tinha algo de nostálgico. Na realidade uma sensação conhecida sobre algo que nunca fora vivido. Coisas de uma mente em constante reforma.
Assim, depois de tantos anos tendo rachaduras como vista, dando-se por satisfeita com os fragmentos de cal e gesso absorvidos durante as fungadas saídas dos lençóis, não esperava que algum dia seriam pintadas cabras ao fundo. Vejam só, cabras!
Desse jeito até poderia perdoar as esquisitices de um povo tão simplório. Talvez os caprinos fossem a moeda local.
Saindo cedinho reatava os laços com o sol, essa sua timidez própria dos dias frios lhe fazia sorrir mesmo antes de despertar completamente. Na mão direita um copo de café fervendo, na mão esquerda, atrapalhada, buscava os óculos escuros para poder olhar o céu. A promessa de passos mais lentos era derrubada pela urgência costumeira, despropositada porém. Enfim, algo teria que continuar no ritmo dos seus pensamentos, já que o equilíbrio se mostrava fundamental nesses últimos meses.
Cruzando com pássaros bem resolvidos e flores que alcançavam seu ombro, ela presta atenção nos detalhes. Apenas alguns naquele dia. Outros ficariam para os próximos, pois não era possível degustar tantos elementos sem evitar que seus sabores passassem informações equivocadas na mistura. Pouco antes de alcançar o bonde que perambula preguiçoso pela via principal, ela sente um perfume tão ou mais familiar que o cheirinho de creme de rosto da mãe. Pára um instante, segura a cena. Ao seu lado a chance de resgatar uma velha amizade. De ombros para o ridículo, ela não resiste:
- Bom dia, Sr. Girassol.
E seguiu caminho abafando um risinho infantil.
Assim, depois de tantos anos tendo rachaduras como vista, dando-se por satisfeita com os fragmentos de cal e gesso absorvidos durante as fungadas saídas dos lençóis, não esperava que algum dia seriam pintadas cabras ao fundo. Vejam só, cabras!
Desse jeito até poderia perdoar as esquisitices de um povo tão simplório. Talvez os caprinos fossem a moeda local.
Saindo cedinho reatava os laços com o sol, essa sua timidez própria dos dias frios lhe fazia sorrir mesmo antes de despertar completamente. Na mão direita um copo de café fervendo, na mão esquerda, atrapalhada, buscava os óculos escuros para poder olhar o céu. A promessa de passos mais lentos era derrubada pela urgência costumeira, despropositada porém. Enfim, algo teria que continuar no ritmo dos seus pensamentos, já que o equilíbrio se mostrava fundamental nesses últimos meses.
Cruzando com pássaros bem resolvidos e flores que alcançavam seu ombro, ela presta atenção nos detalhes. Apenas alguns naquele dia. Outros ficariam para os próximos, pois não era possível degustar tantos elementos sem evitar que seus sabores passassem informações equivocadas na mistura. Pouco antes de alcançar o bonde que perambula preguiçoso pela via principal, ela sente um perfume tão ou mais familiar que o cheirinho de creme de rosto da mãe. Pára um instante, segura a cena. Ao seu lado a chance de resgatar uma velha amizade. De ombros para o ridículo, ela não resiste:
- Bom dia, Sr. Girassol.
E seguiu caminho abafando um risinho infantil.
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